O termo personalidade deriva de persona, que significa máscara, referindo-se às máscaras utilizadas pelos atores nos dramas gregos, buscando dar significado aos papéis que representavam. Atualmente, continua refletindo os papéis que todos desempenhamos na vida em sociedade. Trata-se do conjunto de caracteres exclusivos de uma pessoa, parte herdada, parte adquirida. A conduta do indivíduo é certamente influenciada por seu patrimônio genético, mas não totalmente determinada por ele, uma vez que é, igualmente, resultado do seu processo de vida, configurando a consistência de seu comportamento.Na definição de Mario Fedeli, a personalidade “representa a totalidade completa, a síntese do Eu: constitui o núcleo inconfundível, irrepetível, peculiar de cada indivíduo. (…) A ela devem-se a particular visão dos valores de um indivíduo, os seus centros de interesse e o seu modo de chegar ao valor predominante para o qual tende. ‘A personalidade é que vai constituir a originalidade e a nobreza da individualidade, pois ela revela as escolhas e as preferências dadas a um determinado valor”.[1]
São exemplos de elementos da personalidade, que se pode buscar na análise do modo de ser do autor da infração penal:
a) aspectos positivos: bondade, alegria, persistência, responsabilidade nos afazeres, franqueza, honestidade, coragem, calma, paciência, amabilidade, maturidade, sensibilidade, bom-humor, compreensão, simpatia; tolerância, especialmente à liberdade de ação, expressão e opinião alheias;
b) aspectos negativos: agressividade, preguiça, frieza emocional, insensibilidade acentuada, emotividade desequilibrada, passionalidade exacerbada, maldade, irresponsabilidade no cumprimento das obrigações, distração, inquietude, esnobismo, ambição desenfreada, insinceridade, covardia, desonestidade, imaturidade, impaciência, individualismo exagerado, hostilidade no trato, soberba, inveja, intolerância, xenofobia, racismo, homofobia, perversidade.
Naturalmente, muitos desses fatores, quando isoladamente considerados ou mesmo quando não repercutem no desrespeito ao direito de terceiros, devem ser concebidos como frutos da liberdade de ser e de se expressar do indivíduo. Porém, ao cometer um crime, especialmente se a característica negativa de sua personalidade for o móvel propulsor – como a inveja incontrolável ou o desejo de praticar maldade – deve ser levada em conta para o estabelecimento da pena. Esta, no entanto, não será aumentada se não houver nexo de causalidade entre o delito e o elemento negativo da personalidade do agente. Evidentemente, não é porque alguém é egoísta ou exageradamente individualista que merecerá pena exacerbada ao cometer um homicídio, v. g., por razões outras que não se ligam a tais fatores. Mas, se porventura alguém mata outra pessoa com quem divide uma habitação somente para preservar seu “espaço”, cultivando e enaltecendo sua porção egoística, tal elemento deve ser levado em consideração para a fixação da pena.
É imprescindível, no entanto, haver uma análise do meio e das condições onde o agente se formou e vive, pois o bem-nascido, que tende ao crime, deve ser mais severamente apenado do que o miserável que tenha praticado uma infração penal para garantir sua sobrevivência. Por outro lado, personalidade não é algo estático, encontrando-se em constante mutação. Estímulos e traumas de toda ordem agem sobre ela. Não é demais supor que alguém, após ter cumprido vários anos de pena privativa de liberdade em regime fechado, tenha alterado sobremaneira sua personalidade. O cuidado do magistrado, nesse prisma, é indispensável para realizar justiça.
Há variadas críticas no tocante ao elemento personalidade, que serve de base à avaliação da culpabilidade (juízo de censura que se faz em relação ao autor do injusto penal), inclusive sob a alegação de que é impossível ao juiz elaborar um diagnóstico preciso acerca da personalidade de alguém. Assevera-se que a avaliação desse fator na fixação da pena-base provoca um juízo de reprovação incidente sobre o que o agente é ou pensa e não apenas sobre o que ele realizou, o que seria uma forma indevida de culpabilidade do autor ou pelo modo de vida. Não nos parece devamos encarar a questão sob a ótica de que a punição está sendo efetivada por conta do modo de ser de uma pessoa. Para decidir se houve ou não crime, o juiz não leva em conta a personalidade. Logo, inexiste punição somente porque alguém é diferente da maioria, retirando-se sua liberdade de agir ou pensar. Entretanto, justamente para evitar a padronização da pena, após a constatação de que o delito ocorreu, deve-se levar em consideração, sim, o modo de ser do acusado, inclusive porque a premeditação do delito, por exemplo, cultivada de forma lenta e gradual, calculada, estudada e maquiavelicamente executada é demonstrativa de uma personalidade maldosa e desleal, merecedora de maior censura, sem dúvida.
O juiz não precisa ser um técnico para avaliar a personalidade, bastando o seu natural bom senso, utilizado, inclusive e sempre, para descobrir a própria culpa do réu. Inexiste julgamento perfeito, infalível, pois sempre se trata de simples justiça dos seres humanos, de modo que o critério para analisar o modo de ser e agir de alguém constitui parte das provas indispensáveis que o magistrado deve recolher. É bem verdade que há decisões superficiais, mencionando em poucas palavras que a personalidade do réu é deturpada ou voltada ao crime, mas esse critério não necessita ser por isso eliminado, bastando que seja aperfeiçoado, dedicando-se o julgador a buscar maiores elementos de apoio para chegar ao seu veredicto. Podem e devem as partes contribuir para tanto, inclusive, se necessário, solicitando a produção de avaliação psicológica do acusado, ou mesmo arrolando, como testemunha, profissional especializado para fornecer informações detalhadas ao juiz.
Não se exige que o magistrado seja um autêntico psicólogo para avaliar a personalidade, afinal, essa análise não tem a finalidade de conferir ao réu um tratamento qualquer, mas sim aplicar-lhe uma pena pelo crime reconhecidamente cometido. Fosse considerado um autêntico diagnóstico o julgamento do juiz acerca da personalidade, como se se tratasse de um profissional especializado, e não poderia o magistrado avaliar praticamente nada em matéria penal. Lembremos que a análise do dolo (se direto ou eventual) e da culpa (se consciente ou inconsciente) envolve critérios subjetivos do julgador, ainda que calcados nas provas existentes nos autos. Quanto mais se cercear a atividade individualizadora do juiz na aplicação da pena, afastando a possibilidade de que analise a personalidade, a conduta social, os antecedentes, os motivos, enfim, os critérios que são subjetivos, em cada caso concreto, mais cresce a chance de padronização da pena, o que contraria, por conseqüência, o princípio constitucional da individualização da pena, aliás, cláusula pétrea.
Invadir o âmago do réu, através da análise de sua personalidade, para conhecê-lo melhor, não como mero objeto da aplicação da pena, mas como sujeito de direitos e deveres, enfim como pessoa humana, torna a pena mais justa e sensata no seu quantum e no seu propósito.
Insistimos, pois, dever o julgador, ao analisar detidamente a personalidade do réu, levar em conta os fatores que se esgotam na atividade delituosa e não no ser humano como um todo, afinal, defeitos todos possuímos e nem sempre eles se revelam em móveis propulsores de ação criminosa. Portanto, se alguém é agressivo, desonesto e invejoso, ao praticar lesão corporal, o aspecto de sua personalidade a ser destacado na sentença é justamente a agressividade, desprezando-se as outras facetas negativas. Não se está julgando o ser humano apenas, mas o fato que ele praticou – culpabilidade pelo fato é a tônica –, motivo pelo qual se é invejoso ou desonesto pouco importa. Salvo, obviamente, se a agressão foi calcada, por exemplo, na sua inveja. Nessa hipótese, duas são as particularidades a destacar e, com isso, agravar a pena-base.
Na precisa colocação de Aníbal Bruno, pode-se encontrar na personalidade valiosa contribuição para a fixação da pena, pois não se deve “esquecer que o crime nasce do encontro de determinada personalidade com determinada circunstância”.[2] Aliás, é o que sempre frisaram os estudos de psicologia, uma vez que “não há personalidade sem conduta nem há condutas sem personalidade; essa última não é algo distinto que está ‘por trás’ dos fenômenos da conduta e não há nenhuma manifestação de um ser humano que não pertença à sua personalidade. Essa caracteriza-se por suas pautas de conduta mais habituais ou predominantes ou por certas características comuns a um conjunto predominante de suas manifestações de conduta”.[3]
Nada mais justo e consagrador do princípio constitucional da individualização da pena do que levá-la em conta para a aplicação concreta da pena.