“A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (art. 5º, XXXVI, CF, grifamos). “O Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença” (art. 5º, LXXV, CF). Naturalmente, por razões de segurança jurídica, prevê-se a inviolabilidade da coisa julgada, dentre as garantias humanas fundamentais, mas, também, como matéria de interesse da sociedade. Não seria viável a revisão de julgados a qualquer momento, gerando instabilidade e ansiedade tanto para quem foi condenado, como para o absolvido. Ora, se nem mesmo a lei pode prejudicar a coisa julgada, o que se poderá dizer de um novo julgamento? No entanto, há uma promessa estatal de que o Estado indenizará o erro judiciário. Este, por sua vez, somente é detectado, após o trânsito em julgado, como regra. Afinal, enquanto houver possibilidade de recurso, torna-se evidente não haver coisa julgada e os eventuais erros podem ser corrigidos.
A revisão criminal é uma ação penal de natureza constitutiva e sui generis, de competência originária dos tribunais, destinada a rever decisões condenatórias, com trânsito em julgado, na hipótese de ter havido erro judiciário. É a definição que apresentamos em nosso Código de Processo Penal comentado (nota 1, Capítulo VII, Título II) e em nosso Manual de Processo Penal e Execução Penal (Capítulo XXIII, subitem 2.1). Temos defendido, também, ter a revisão constitucional o status de garantia humana fundamental, afinal, é uma decorrência natural do direito à apuração do erro judiciário, que o Estado prometeu corrigir e indenizar. Além disso, se ao Supremo Tribunal Federal cabe julgar a revisão criminal de seus próprios julgados (art. 102, I, j, CF), é mais do que natural e justo seja um direito extensível aos demais réus, cujas causas não atingiram o Pretório Excelso, mas foram abrangidas, da mesma maneira, pelo manto da coisa julgada.
Do exposto, estamos diante de três institutos de natureza constitucional: a revisão criminal, a coisa julgada e o erro judiciário. Haverá de prevalecer um sobre o outro? Jamais é a resposta prudente. Sabemos ser majoritário o entendimento de que as normas constitucionais devem ser interpretadas harmonicamente, em especial os direitos e garantias fundamentais. Assim ocorrendo, não haveria a injustificada sobreposição de um importante direito, por exemplo, sobre uma essencial garantia.
Fosse a coisa julgada a mais relevante garantia e não seria possível identificar e consertar o erro judiciário, em caso de condenação definitiva. Fosse a revisão criminal o mais importante dos direitos e não haveria fim para qualquer processo, pois o condenado poderia buscar a sua reavaliação indefinidamente.
Em harmonia e com equilíbrio pode-se – e deve-se – chegar a uma síntese. Um primeiro aspecto a ser ressaltado é o disposto no art. 621 do Código de Processo Penal, enumerando os casos em que cabe revisão criminal. As hipóteses previstas nos incisos II (“quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos”) e III (“quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena”) são conseqüências lógicas do instituto. Se alguém for condenado com base em prova falsa, emerge, evidente, o erro judiciário. Do mesmo modo, sendo o réu condenado com fundamento em provas existentes nos autos, mas surgindo, posteriormente, outra, inédita, demonstrativa da sua inocência, com maior razão ainda caberá a revisão criminal.
Entretanto, preocupa-nos o alcance e a aplicação, na prática, do disposto no inciso I: “quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos”. Se utilizado com parcimônia, pode corrigir alguma distorção, realizando justiça. Porém, se usado como se fosse algo corriqueiro, torna a revisão criminal uma super ação, derrotando, sem motivo plausível, a coisa julgada, enfraquecida a ponto de perder a sua importância.
Lembremos de alguns pontos: como pode a sentença condenatória ser contrária a texto expresso de lei penal e nenhuma das partes ter constatado tal situação, deixando-a transitar em julgado? Ou teria havido recurso e também o Tribunal não percebeu erro crasso? Ou estaria havendo uma “armação” contra o réu por parte do juiz, do promotor (que também pode recorrer em benefício do acusado) e do defensor? Cuida-se de hipótese de raríssima ocorrência. E quando tal se der, muitas vezes, gera nulidade absoluta, motivo pelo qual seria cabível o habeas corpus (art. 648, VI, CPP). Quanto a ser a sentença condenatória contrária à evidência dos autos, devemos indagar, de início, o que constituiria tal expressão? Em sentido amplo, é a qualidade daquilo que é certo ou manifesto. Em sentido estrito e jurídico, seria o resultado das provas produzidas. Seja como for, mais uma vez, torna-se quase improvável que, proferida a decisão, nenhuma das partes recorra e, se tal ocorrer, o Tribunal não corrija o engano.
No entanto, embora de concretização dificultosa, pode dar-se. Para tanto, valer-se-ia o condenado da revisão criminal.
Nossa crítica volta-se, entretanto, aos Tribunais que, menosprezando o entendimento de magistrados anteriores, muitas vezes colegas seus na mesma Corte, resolvem dar procedência à revisão criminal para analisar subjetivamente, de maneira diversa, as provas produzidas. A decisão condenatória não era manifestamente contrária à evidência dos autos, mas, sim, contrária ao entendimento pessoal dos membros daquele novo colegiado. Se assim for feito, amiúde, ofende-se a coisa julgada, indevidamente.
Podem ser encontrados, inclusive, determinados julgados, considerando procedente a revisão criminal para alterar a pena anteriormente aplicada – e muitas vezes anos depois, quando o condenado já quase a cumpriu. Ora, o procedimento de aplicação da pena envolve inúmeros aspectos de análise exclusivamente subjetiva. O que seria, ilustrando, personalidade, na ótica do julgador, ao avaliar o conteúdo do art. 59 do Código Penal? Certamente, magistrados teriam opiniões diversas sobre o mesmo réu. Seria essa divergência na avaliação da personalidade do condenado uma motivação suficiente para romper a segurança da coisa julgada, alternando-se a pena anteriormente fixada? Queremos crer que a resposta é negativa, sob o prisma da preservação da harmonia dos direitos e garantias humanas fundamentais, de status constitucional.
Em suma, a revisão criminal deve ser utilizada para efetivamente corrigir erros judiciários, afetando a coisa julgada, mas nunca para reavaliar o trabalho já realizado por magistrados anteriores, sob o pretexto de empregar uma nova interpretação pessoal e subjetiva.