Recentemente, um ator global de primeira linha, aproveitando-se de sua ascendência no exercício do emprego, colocou a mão na vagina de uma funcionária de importante rede de televisão. Praticou, com boa evidência, o crime de assédio sexual, descrito no art. 216-A do Código Penal, delito esse que depende de representação da vítima para ganhar o âmbito forense. Possivelmente, o mesmo temor que fez a ofendida calar-se por bastante tempo (ela noticiou não ter sido a primeira vez) é o mesmo que a envolverá para não representar contra a importante celebridade. Fosse um homem comum num ambiente comum seria bem possível que houvesse ação penal.
O assédio sexual é assim descrito: “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos”. Desde o início (crime inserido em 2001 no Código Penal), temos criticado a sua redação defeituosa. Constrange-se alguém a fazer o quê? O tipo penal não diz. Mas deixa claro o intuito do agente, que obter favores sexuais, valendo-se da sua posição superior à vítima assediada. Embora constitua um tipo penal mal redigido, a atitude do ator global tornou-se bem clara (outros assédios, menos evidentes, poderiam gerar dúvidas razoáveis), pois inseriu a sua mão na vagina da vítima. Pretendia brincar? Sem dúvida, brincar de fazer sexo. Atitudes como essa terminam por servir de exemplo concreto do que significa assédio sexual.
A conduta do agente do crime de assédio sexual é bem nítida: investe contra a pessoa subordinada (sendo ele superior hierárquico) ou pessoa sobre a qual possui ascendência (ser mais importante; ser alguém a ser atendido; ser pessoa a ser atendida simplesmente por ser quem é) em razão do emprego. Diante disso, o crime ficou nítido, com dolo e todos os demais elementos necessários. Mas, falta a representação da vítima, que, dificilmente, virá. Talvez viesse se a empresa preferisse demitir a ofendida para proteger o agressor. Como este não encontrou respaldo, pode ser que a vítima se sinta recompensada e deixe tudo como está.
Entretanto, temos demonstrado em nossas obras como o crime, cometido em classes sociais distintas e elevadas, tende a ser simplesmente ignorado ou desprezado. Nem se fuja à discussão de algo óbvio: o aborto (outro crime) realizado por mulher economicamente favorecida em clínica elegante e de alto custo não ingressa em estatísticas vulgares do número de abortos realizados no Brasil. Porém, se uma mulher pobre tenta fazer o aborto sozinha e termina num hospital público, seu caso se torna um cenário criminal. Trata-se da atuação do direito penal seletivo. Independentemente de se debater a legalidade ou ilegalidade do aborto, o ponto é simples: para classes superiores, não “existem” abortos; para as camadas pobres, embora de difícil comprovação, os abortos chegam a ir a julgamento pelo Tribunal do Júri.
Como transformar o universo do Direito Penal em democrático e igualitário? Quase impossível. Nos altos escalões, muitos crimes são simplesmente abafados (tráfico de drogas, violência doméstica, assédio sexual, aborto, infanticídio, furto, furto de coisa comum, estelionato, falsos e muito mais). Nas camadas baixas da população, todos esses delitos aparecem e transformam-se em processos-crime (como regra).
Observe-se a narrativa da vítima: “Em fevereiro de 2017, dentro do camarim da empresa, na presença de outras duas mulheres, esse ator, branco, rico, de 67 anos, que fez fama como garanhão, colocou a mão esquerda na minha genitália. Sim, ele colocou a mão na minha buceta e ainda disse que esse era seu desejo antigo”, disse Su Tonani (http://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv/entenda-caso-jose-mayer-acusado-de-assedio-por-su-tonani-figurinista-da-tv-globo-21158756#ixzz4dJlRreia).
Observa-se, com nitidez, o temor subserviente da vítima, que visualiza o agressor como um homem “branco, rico, de 67 anos, com fama de garanhão”. Como, dentro do contexto de uma empresa, pode a vítima insurgir-se contra o agente?
Em lugar de confessar seu crime, prefere o homem branco, rico e famoso dizer simplesmente: “errei”. E buscou dizer, na entrelinhas: “quem não erra?”. Afinal, a sua formação foi machista e ele terminou mal educado. Criminoso? Nem sabe o que é isso.
Eis o trecho: “Eu errei. Errei no que fiz, no que falei, e no que pensava. A atitude correta é pedir desculpas. Mas isso só não basta. É preciso um reconhecimento público que faço agora. Mesmo não tendo tido a intenção de ofender, agredir ou desrespeitar, admito que minhas brincadeiras de cunho machista ultrapassaram os limites do respeito com que devo tratar minhas colegas. Sou responsável pelo que faço… Tenho amigas, tenho mulher e filha, e asseguro que de forma alguma tenho a intenção de tratar qualquer mulher com desrespeito; não me sinto superior a ninguém, não sou. Tristemente, sou sim fruto de uma geração que aprendeu, erradamente, que atitudes machistas, invasivas e abusivas podem ser disfarçadas de brincadeiras ou piadas. Não podem. Não são. Aprendi nos últimos dias o que levei 60 anos sem aprender. O mundo mudou. E isso é bom. Eu preciso e quero mudar junto com ele. Este é o meu exercício. Este é o meu compromisso. Isso é o que eu aprendi. A única coisa que posso pedir a Susllen, às minhas colegas e a toda a sociedade é o entendimento deste meu movimento de mudança. Espero que este meu reconhecimento público sirva para alertar a tantas pessoas da mesma geração que eu, aos que pensavam da mesma forma que eu, aos que agiam da mesma forma que eu, que os leve a refletir e os incentive também a mudar. Eu estou vivendo a dolorosa necessidade desta mudança. Dolorosa, mas necessária. O que posso assegurar é que o José Mayer, homem, ator, pai, filho, marido, colega que surge hoje é, sem dúvida, muito melhor. José Mayer” (https://tvefamosos.uol.com.br/noticias/redacao/2017/04/04/jose-mayer-admite-que-passou-dos-limites-em-carta-aberta.htm).
Não fosse uma declaração verdadeira, publicada nas redes sociais, poder-se-ia dizer que seria uma brincadeira. Vamos por pontos: a) em primeiro lugar, houve um crime ao qual foi dedicado um singelo pedido de desculpas; sou obrigado a ressaltar que outros criminosos ilustres, com um simples pedido de desculpas, afastaram a sua responsabilidade penal; b) como o fato se tornou público, as desculpas pelo delito praticado precisam ser inseridas em reconhecimento público (o que significa isto? O reconhecimento público é um alvará para o crime?); c) o agente do assédio clama por brincadeiras machistas exageradas… Se assédio sexual é uma tosca brincadeira, o estupro também pode ser. E todos os demais delitos sexuais, o que se nos afigura um absurdo; d) não fosse verdadeira, a alegação seria uma piada: não se julga o agressor superior a ninguém. Realmente. Se ele não se considerasse superior à vítima teria metido mão na sua vagina? Por que o referido ator global não colocou sua mão em genitália de mulher da diretoria da empresa onde trabalha? Talvez, ninguém chame a sua atenção; e) o agressor menciona estar vivendo uma dolorosa necessidade de mudança. Chega a ser risível. O agente, que várias vezes, vitimou esta e outras pessoas, precisa aprender a respeitar o ser humano. Alguém, no passado, ensinou-lhe que mulheres não valem nada, não tem vontade própria e pode-se, com elas, fazer o que quiser. O ator global, então, com 67 anos, vivendo num mundo paralelo, não percebeu que o mundo mudou… Que existem direitos individuais para homens E mulheres, em igualdade de condições. Este agente do flagrante assédio sexual se diz “surpreso” e ainda fornece “dicas” para outros homens da sua geração para não fazerem o que ele fez. Chega a ser inacreditável.
Melhor seria um mero pedido de desculpas, sem uma análise machista do quadro machista do assédio sexual machista. Mas não foi assim. Tratou-se de um pedido de desculpas pelo que o agente é e não pelo respeito que ele deveria ter para com a vítima. Em síntese, seria o mesmo que dizer: sou macho, posso tudo, mas agora vejo que posso ter exagerado, porque o assunto caiu na mídia. Sem a exposição do fato, tudo continuaria exatamente como decorre hoje. Quantas não são as vítimas de assédio sexual em empresas similares? O poder corrompe. Assédio sexual é um instrumento de corrupção moral. É preciso representar e dar possibilidade para o Ministério Público agir.
Em conclusão, houve a prática de um crime, que depende da provocação da vítima, para que o Ministério Público possa atuar. Tratando-se de emprega de alto gabarito, tudo se resolverá internamente. Logo, o machismo será um ponto controverso sem acesso ao Judiciário. E isto ocorrerá várias outras vezes.
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