Por que foi editada a Súmula 608 do STF? Parece-nos ter sido em virtude de política criminal, resguardando o interesse da sociedade na apuração e punição do autor do estupro, quando cometido com violência real; a época da edição sumular coincide com o estreito caminho para a vítima (mulher) alcançar a exposição de ter sido vítima de estupro, sem enfrentar o preconceito e eventuais brincadeiras de mau gosto originárias de delegacias de polícia compostas, basicamente, por policiais do sexo masculino.
Se a edição da referida Súmula não teve sustentáculo na política criminal de conferir à mulher maior proteção, forçando-a a ser vítima de um estupro violento, já que este crime seria apurável de qualquer maneira pelo Estado, então, vamos buscar uma razão de ordem técnica. E não se vai encontrar.
Por quesitos:
a) o estupro é um crime complexo? Pode-se dizer que sim, desde que se aceite a posição doutrinária de que se trata de um delito complexo em sentido amplo, ou seja, formado por um outro tipo penal associado a uma conduta lícita, em tese: constrangimento ilegal (art. 146, CP) + ato libidinoso (abrangendo a conjunção carnal). Se o constrangimento ilegal é de ação pública incondicionada, logo, também deve ser o estupro. Ora, se assim fosse, a Súmula 608 não poderia ter retirado a alternativa do estupro cometido por grave ameaça (uma das partes integrantes do tipo do art. 146). Não tem sentido apurar o estupro incondicionalmente, se houver violência, mas respeitar a vontade da vítima, se houver grave ameaça;
b) o estupro seria um crime composto pela lesão corporal, no tocante à parte violenta? Pensamos que a mais adequada resposta é a que expusemos no primeiro quesito, mas, somente para argumentar, pode-se dizer que à época da edição sumular o crime de lesões corporais leves era de ação pública incondicionada; então, o estupro, que a contém, também seria. Mas a Lei 9.099/95 surgiu, transformou a lesão leve em crime condicionado à representação da vítima e a Súmula 608 persistiu. Logo, não era a lesão leve (maioria absoluta dos casos de estupro) o lastro para a referida Súmula;
c) o entendimento do STF suplanta lei federal? Entendemos que não, mas há penalista que diga o contrário. O STF interpreta determinada lei federal, como fez com o antigo art. 225 do CP e profere o seu entendimento, inclusive no formato de Súmula. Mas, quando a lei federal muda completamente, passando a considerar a ação penal dos crimes sexuais de privada para pública condicionada, como manter a mesma interpretação? Nem mesmo a política criminal protetora da mulher pode ser alavancada, tendo em vista, inclusive, a existência, hoje, de Varas (e Delegacias) especializadas em violência doméstica e contra a mulher. Aliás, seria mesmo estranho a existência de uma súmula protegendo o homem, quando este fosse estuprado com violência real (por outro homem ou por uma mulher), já que o tipo do art. 213 do CP permite essa hipótese. O STF, s.m.j., como órgão judiciário deve respeito à lei e suas súmulas não podem estar acima da lei federal;
d) a Súmula 608 valeria para as hipóteses de estupro com resultado lesões graves ou para o resultado morte? Não há necessidade alguma. Considerando-se o crime complexo, de onde se extrai resultados gravíssimos (crime qualificado pelo resultado), de típica ação penal pública incondicionada, conforme o art. 101 do CP, a súmula 608 não tem valor algum. Não há sentido em se colher a manifestação da vítima, que morreu… Nem mesmo há razão para lhe pedir a representação, quando há, no cenário, lesões graves, lesões estas que seriam mesmo de ação pública incondicionada;
e) por que o legislador teve a cautela de tornar vários delitos contra a dignidade sexual, envolvendo apenas adultos (sem pessoas vulneráveis) apuráveis em ação pública condicionada à representação da vítima? (lembre-se que, antes, era ação privada). Não foi gratuita essa opção. Quem sofre abuso sexual pode sentir-se constrangido e humilhado e não desejar colocar a público o estupro que o vitimou. Assim como se respeita a vontade da vítima de crimes contra a honra.
A publicidade de um processo-crime pode espalhar um acontecimento que deveria ser absorvido e mantido em sigilo. Não pode a Súmula 608, então, retirar da pessoa ofendida esse direito de abafar o caso. Nem se diga que os processos apurando delitos sexuais correriam em segredo de justiça (art. 234-B), pois o ponto não é esse, mas o direito da vítima de realmente enterrar a situação da qual foi vítima. E vamos um pouco além: quem consegue, no Brasil, sigilo absoluto de algo? Até as delações premiadas (super sigilosas até o início do processo) têm sido conhecidas e divulgadas mesmo antes de ser celebrado o pacto do delator com o Ministério Público. Imagine-se, por outro lado, que uma importante figura de um dos Poderes da República (homem ou mulher) sofra um estupro violento. Será mesmo que essa pessoa sentir-se-á bem quando o MP forçá-la a depor, pois a ação é pública incondicionada? Não creio. Então, poderá surgir a seguinte situação de nítida desigualdade: a mulher ou o homem rico, famoso ou poderoso pode ocultar o estupro violento que sofreu, para não tornar a situação ainda mais humilhante, pois dispõe de farto recurso econômico para passar longe de um hospital público em caso de lesão sofrida; a mulher ou o homem pobre, sem prestígio social ou político, termina buscando socorro no hospital público, quando, então, o estupro sofrido torna-se público e haverá uma ação penal obrigatória, para divulgar o triste episódio.
Em síntese, a Súmula 608 não tem mais valor jurídico em face do exposto e diante da novel Lei 12.015/2009. No entanto, não deixa de ser interessante observar que muitos julgados, acolhendo a “ainda vigente” Súmula 608, nada fundamentam. Apenas dizem que a Súmula 608 do STF está em vigor. Assim é fácil, pois basta achar e tudo se transforma no mundo do Direito como num passe de mágica.
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