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Da inaplicabilidade do art. 489 do CPP em respeito à soberania dos veredictos no Tribunal do Júri

Preceitua o art. 489 do Código de Processo Penal, cuidando da votação do Conselho de Sentença, em sala especial, que, “se a resposta a qualquer dos quesitos estiver em contradição com outra ou outras já proferidas, o juiz, explicando aos jurados em que consiste a contradição, submeterá novamente à votação os quesitos a que se referirem tais respostas”. Por outro lado, convém ressaltar ser princípio constitucional, regente da instituição do júri, o respeito à soberania dos veredictos (art. 5º, XXXVIII, c, CF).

Em nosso entendimento, inexiste qualquer viabilidade para os jurados entrarem em contradição. Todo eventual equívoco ocorrido durante o processo de votação é da responsabilidade do juiz presidente. Outra interpretação seria calcada na indevida análise e busca do propósito do Conselho de Sentença ao votar cada quesito individualmente. Em outros termos, pode-se defender a possibilidade de contradição entre as respostas dadas pelos jurados se houver uma tentativa de fundamentar o veredicto popular, algo contrário ao princípio da livre convicção íntima, que rege o julgamento.

Um exemplo de busca de fundamentação inadequada: imagine-se que o Conselho de Sentença afirmou, em quesitos relativos à legítima defesa, ter o réu se defendido de agressão injusta. Posteriormente, afastou a legítima defesa porque a agressão não foi atual ou iminente. Cessada a excludente de ilicitude, coloca o magistrado em votação a qualificadora referente ao motivo fútil, aceita pelos jurados. Termina o réu condenado por homicídio qualificado. Tentando demonstrar a contradição, o tribunal determina novo julgamento, alegando que o júri havia afirmado ter o réu se defendido de agressão injusta, logo, não poderia a mesma agressão ser, na seqüência, considerada fútil. Haveria no conjunto das respostas uma contradição.

Não há nenhuma contradição; apenas, realizou-se, como deve acontecer sempre, a soberania dos veredictos e a livre convicção íntima dos jurados. Estavam os juízes leigos propensos a considerar injusta a agressão da vítima, mas a tese da legítima defesa foi afastada. Assim ocorrendo, concretizou-se um homicídio. Resta saber se qualificado ou simples. Sob outro cenário, então, os jurados reavaliam o conjunto probatório, gravado em suas memórias, decidindo que, em face da nova situação, o crime decorreu de motivo fútil. As decisões são tomadas por maioria de votos, pouco importando quem (ou quais) mudou de idéia e resolveu desconsiderar a agressão injusta da vítima, passando a caracterizar como infundada a agressão do réu. Por isso, fútil.

Ora, se não se exige coerência dos jurados, uma vez que são leigos e não devem fundamentar suas decisões, descabe ao tribunal togado ou ao juiz presidente interpretar o querer do Conselho de Sentença. Do contrário, haveria o seguinte quadro, em nosso prisma, ilógico: afirmada a reação do réu à agressão injusta da vítima, mas rechaçada a tese da legítima defesa, estaria prejudicado o quesito referente ao motivo fútil. Em tese, nem mesmo em votação deveria ser colocado pelo juiz presidente. Se este o fez (e deveria mesmo fazê-lo), tem o Conselho de Sentença integral liberdade para acolher a qualificadora da futilidade ou não.

Perpetuando, ainda, a argumentação concentrada no mesmo exemplo. Suponha-se tenha o juiz colocado em votação o quesito relativo à futilidade. Afirmado este, teria havido contradição. O magistrado deveria deter a votação e revelar aos jurados que eles entraram em choque, pois antes haviam afirmado que a agressão da vítima fora injusta, mas, agora, teriam considerado fútil a atitude do réu. Logo, seria necessário repetir todo o processo, recomeçando a votação da legítima defesa desde o início. Se os jurados acolhessem, então, a legítima defesa, depois de a terem rejeitado num primeiro momento, também se poderia alegar contradição, ou seja, não saberiam eles o que realmente seria o certo. Se, após terem sido alertados acerca da pretensa contradição, eles rejeitassem a tese da legítima defesa e tornarem a afirmar a futilidade, o que faria o juiz? Dissolveria o Conselho de Sentença e redesignaria outro julgamento? Quem iria garantir que outros jurados, no futuro, não poderiam fazer o mesmo? Sem respeito à soberania dos veredictos, pode-se eternizar o julgamento até que os jurados decidam conforme ache justo o juiz presidente. Tal medida seria um autêntico contra-senso, uma vez que o Tribunal do Júri é leigo e não se deve ater a nada mais que não sua consciência.

Se o reconhecimento do quesito relativo à injustiça da agressão, por parte da vítima, for afirmado, mas rejeitada a legítima defesa posteriormente, uma vez colocado em votação o quesito concernente à futilidade da motivação, não se pode exigir que os jurados o respondam negativamente. Assim acontecendo, está-se, na verdade, subtraindo a soberania do veredicto popular.

Não colocando em votação a questão pertinente à futilidade, somente porque, antes, os jurados afirmaram a injustiça da agressão por parte do ofendido, significa, do mesmo modo, tolher a liberdade dos jurados, inclusive, de mudarem de idéia durante o julgamento. Ademais, a rejeição à tese da defesa faz com que a da acusação possa florescer integralmente. Não há que se tomar uma parte dos quesitos da legítima defesa para servir de base à futura votação de qualquer qualificadora.

É evidente que erros podem ocorrer durante a votação. Porém, advêm sempre da atuação do juiz presidente. Ilustrando, se os jurados responderem afirmativamente à tese da defesa de ter o réu agido por relevante valor moral, não há mais cabimento em se votar a qualificadora da motivação fútil. Nesse caso, as duas situações são contraditórias e dizem respeito exatamente à mesma causa: o motivo da ação do réu. O magistrado, reconhecido o relevante valor moral, deve dar por prejudicado o quesito pertinente à futilidade. Afirmar ambos torna impossível aplicar a pena: ou o motivo é relevante ou é fútil.

No entanto, se a tese da legítima defesa é afastada, deve-se desconsiderá-la por completo, já que não poderá ser levada em conta para a aplicação da pena. Por outro lado, no caso do relevante valor moral (causa de diminuição da pena), se reconhecido, conflita com a qualificadora do motivo fútil (outra causa que provoca o aumento da pena).

Concluindo, ad argumentandum, para quem defenda a incompatibilidade entre a afirmativa do quesito relativo à reação do réu a uma agressão injusta da vítima, embora afastada a legítima defesa em quesitação subseqüente, é indispensável que o juiz presidente declare, então, prejudicado o quesito relativo à motivação fútil.

O que não pode ocorrer, em hipótese alguma, é permitir a votação a tal quesito para, depois, questionar o veredicto popular, determinando que o Conselho de Sentença proceda a nova votação. Em nossa visão, a liberdade dos jurados é ampla. Se houver qualquer contradição de direito, cabe ao magistrado conduzir a votação a bom termo, evitando que quesitos contraditórios sejam votados concomitantemente. Os jurados jamais entram em contradição. Se esta se consumar, a responsabilidade sempre terá sido do juiz presidente. Por isso, soa-nos inaplicável o art. 489 do CPP.