Proclama-se, no art. 1º, da Constituição Federal, ser a República Federativa do Brasil um “Estado Democrático de Direito”. Dentre os objetivos fundamentais do País estão: “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “reduzir as desigualdades sociais”, “não haver nenhuma forma de discriminação” (art. 3º, CF). Um dos princípios a preservar: “prevalência dos direitos humanos” (art. 4º, CF). Na abertura do Título II, que cuida dos direitos e garantias fundamentais, encontramos: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (art. 5º, caput, CF).
Ora, em uma sociedade livre, justa, solidária, que prega a igualdade entre as diversas camadas sociais, sem qualquer espécie de discriminação e sem distinção de qualquer natureza entre brasileiros, soa-nos injustificável a mantença de privilégios processuais (ou mesmo penais) a determinadas pessoas, sob o manto protetor do cargo ou função. E, mais interessante, somente na esfera da jurisdição penal. Como se a autoridade fosse vulnerável nesse contexto, mas não em outros. Um Senador da República pode responder a um juiz de primeira instância em uma causa de natureza cível, mas jamais criminal. Por quê? Afinal, se o que se leva em consideração é a majestade do cargo (qualquer que seja ele), não poderia ser julgado por um mero magistrado de primeiro grau. Lembremos que causas cíveis podem trazer maiores prejuízos às partes do que as penais. Permitimo-nos recordar que, no tocante à imunidade parlamentar, tantos foram os problemas enfrentados, em casos concretos, que houve a edição da Emenda Constitucional 35/2001, acrescentando ao caput do art. 53 serem os parlamentares imunes na órbita penal e também civil. Afinal, quando aqueles que se sentiam ofendidos não podiam buscar amparo no juízo penal, moviam ações reparatórias no campo civil, o que acabava por afetar o parlamentar do mesmo modo.
Por isso, em variadas situações, discrimina-se, sem dúvida, o brasileiro. Isso se dá, com nitidez, ao sustentar ser o foro por prerrogativa de função, por exemplo, uma autêntica garantia e uma forma de proteção à perseguição política, a partir do instante em que se concede à autoridade determinados privilégios que outros não têm. Não é o cargo, nem a função que comete um crime, mas o ser humano. Este, sim, deve ter um julgamento justo e imparcial, mas pelo juízo comum, destinado aos demais cidadãos, independentemente de titulação ou outra forma de primazia.
Podemos mencionar, no mínimo, três vantagens das autoridades em relação aos demais brasileiros, na ordem de importância merecida: a) o foro por prerrogativa de função; b) a prisão especial; c) a imunidade parlamentar.
Quanto ao foro privilegiado, pode-se argumentar ter ele status constitucional, razão pela qual não pode ser considerado inviável. Argumentamos que a previsão feita em normas constitucionais não é suficiente para apagar o seu caráter de ilegitimidade e de descompasso para a consolidação de um Estado, que se apregoa Democrático de Direito, mas é somente, nessa ótica, de Direito, pois democracia não nos permite supor desigualdades entre iguais. E são iguais, insista-se, o criminoso com ou sem cargo (ou função) pública.
Observa-se, atualmente, ser o foro privilegiado autêntico escudo protetor de autoridades em geral, em variados casos, pois se remete ao Supremo Tribunal Federal, ilustrando, o julgamento de certos crimes, devendo haver instrução e, conseqüentemente, o devido processo legal. Como podem apenas onze Ministros cuidar de todos os feitos envolvendo as autoridades relacionadas pelo art. 102, I, “b” e “c”, da Constituição Federal? Existindo o instituto da prescrição, é natural supor que muitas causas terminam sem nem mesmo haver avaliação de mérito. Em outras Cortes dá-se o mesmo. Na realidade, os magistrados de primeira instância têm a destinação primordial de instruir os processos, colhendo provas e fornecendo a sua visão preliminar do caso, que é a sentença. Certamente, ao menos em casos que envolvem interesses relevantes, não será a última decisão. Torna-se, praticamente, um parecer. Há incontáveis recursos a interpor. Podem, ainda, se manifestar sobre o tema o Tribunal Estadual ou Regional, o Superior Tribunal de Justiça e, finalmente, o Supremo Tribunal Federal. Logo, por que não deixar que o processo natural supra mencionado tenha seu curso em qualquer situação? Seja o réu um parlamentar, seja um magistrado, seja qualquer importante autoridade, deveria caber, sempre, ao juiz de primeiro grau instruir o feito por completo e emitir a primeira decisão.
Outro fator de inquietação é a prisão especial. Neste caso, não somente as autoridades, mas outros segmentos sociais auferiram vantagens inadmissíveis. A discriminação abrange categorias variadas. O art. 295 do Código de Processo Penal nos fornece um rol não exaustivo dos privilegiados, que devem ser mantidos afastados dos presos comuns. Podemos tomar como base, para ilustração, as pessoas “diplomadas por qualquer das faculdades superiores da República” (art. 295, VII, CPP). Qual a razão para isso? Por acaso, um engenheiro não pode partilhar uma cela com um marceneiro? Se ambos cometeram um delito grave, justificador da prisão cautelar, é mais que natural poderem (e deverem) ficar em igualdade de condições. Aliás, se couber alguma separação é a mais evidente possível: por fatores relacionados à periculosidade de cada um (reincidência, maus antecedentes, condenação definitiva ou provisória etc). Desejando atingir, efetivamente, o Estado Democrático de Direito, o Parlamento brasileiro precisa eliminar essas discriminações injustificáveis. A todos os brasileiros, que precisem ser cautelarmente presos, devem ser oferecidas celas em condições dignas. Mas, jamais, separações por títulos ou outros fatores semelhantes. Utilizemos o exemplo fornecido pela Lei 5.250/67 (Lei de Imprensa): “o jornalista profissional não poderá ser detido nem recolhido preso antes da sentença transitada em julgado; em qualquer caso, somente em sala decente, arejada e onde encontre todas as comodidades” (art. 66, caput). E, no parágrafo único, do mesmo artigo: “a pena de prisão de jornalistas será cumprida em estabelecimento distinto dos que são destinados a réus de crime comum e sem sujeição a qualquer regime penitenciário ou carcerário” (grifos nossos). Cremos que a singela leitura do dispositivo permite a conclusão da desigualdade consagrada em lei, no Brasil. Todos os presos devem ter direito a celas decentes, arejadas, com comodidades básicas, o que não pode significar nenhuma espécie de luxo, afinal, cuida-se de uma forma de punição. Os condenados, por sua vez, devem ser recolhidos em estabelecimentos de igual estrutura, logicamente em regime penitenciário ou carcerário, do contrário não seria pena de prisão, mas outra qualquer, inexistente no Código Penal.
As desigualdades vão gerando distorções e tolerâncias dos mais variados matizes. Utiliza-se o foro privilegiado quando ele é benéfico. Subitamente, pode-se abrir mão do mesmo para se buscar outra forma de justiça. Recentemente, um parlamentar, que há anos aguardava julgamento por crime de tentativa de homicídio, ao se aproximar da decisão final, a ser proferida pelo Supremo Tribunal Federal, renunciou ao mandato e o processo sofreu nova paralisação. Foi remetido à primeira instância. Lembremos que, graças à imunidade, antes vigente, o feito ficou paralisado por vários anos. Independentemente do mérito da decisão tomada pelo Pretório Excelso, o que se critica é a existência do foro privilegiado. Sem este, nada disso teria ocorrido. Por outro lado, tornou-se escândalo mundial a prisão de uma garota em cela povoada por homens em um dos Estados da Federação. Apura-se a possibilidade de tal situação ocorrer em vários outros lugares. Se a menina fosse uma mulher autoridade, tenha-se certeza, tal evento lastimável jamais teria ocorrido. Quer-se com isso dizer que a autoridade presa deva ser lançada a infectos cárceres? Nunca. Pretende-se afirmar, ao contrário, que todos os presos devem ter a dignidade respeitada, sem qualquer discriminação. A prisão especial é uma excrescência porque permite à elite da sociedade (titulados de toda ordem) permanecer indiferente à indignidade do cárcere, ao qual é submetido a massa de pobres brasileiros, não diplomados nem portadores de outros méritos. Fosse a prisão igual para todos e, não nos parece haver dúvida, o encarceramento do ser humano mudaria sobremaneira. Como a filha de uma importante personalidade da sociedade brasileira poderia ser lançada ao convívio com homens em uma mesma cela? Jamais. Logo, providências seriam tomadas para que todas essas esdrúxulas situações fossem sanadas.
Finalizando, a imunidade parlamentar sempre foi distorcida no Brasil. Antes da edição da Emenda Constitucional 35/2001, o deputado ou senador poderia cometer o mais grave crime imaginável e o STF não poderia processá-lo, sem prévia autorização de sua Casa Legislativa, o que nunca ocorria. Agora, há possibilidade de haver processo, mas, ainda assim, é viável a sua suspensão, nos termos do art. 53, § 3º, da Constituição Federal. Igualmente, embora mais facilitada a possibilidade de existência de ação penal, não nos parece cabível, por crime comum, a sustação do processo em hipótese alguma. Cuida-se de outra situação de desigualdade sem sustentação.
O Estado Democrático de Direito não pode ser um emaranhado de normas que se perdem, conflitam entre si e terminam por prejudicar a balança da igualdade de todos os brasileiros.
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