Há muito se tem debatido quais as consequências, para uma criança ou adolescente, quando chamado a depor em juízo (ou em delegacia), seja como vítima ou como testemunha. O que se passa no espírito infanto-juvenil diante da solenidade da situação? Em que medida se garante o sigilo processual (efetivo) acerca daquelas declarações para que não produza maior dano à criança ou adolescente? Quando vítima, a situação torna-se ainda mais delicada, pois há necessidade de se extrair do infante ou jovem a sua versão a respeito dos fatos. Em suma, tem-se sugerido um depoimento ou uma declaração colhida por interposta pessoa, como um profissional de psicologia, em lugar do juiz (ou delegado), nem sempre preparado para essa árdua tarefa. Por outro lado, o psicólogo pode não deter conhecimento jurídico suficiente para extrair fatos relevantes para o desfecho do processo.
A recente edição da Lei 13.431/2017 ingressa neste tema – e em outros correlatos, dizendo respeito aos direitos infanto-juvenis – mas com uma estranha vacatio legis de um ano. Não se está publicando um novo Código, com inúmeros artigos para implementação. São apenas 29 artigos, nos quais se percebe o intuito de conferir proteção integral à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade e, por óbvio, celeridade. Diante disso, entrar em vigor somente daqui a um ano é contraditório e inexplicável.
Dispõe o art. 7o da referida lei que “escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade”. Sobre o depoimento especial, preconiza o art. 8o o seguinte: “depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária”.
A partir dessas novas definições, a lei tem por finalidade resguardar, evitando o contato do infante ou jovem com o suposto autor ou acusado ou com qualquer outra pessoa que possa lhe representar ameaça, coação ou constrangimento. Diante disso, criou a escuta especializada (feita por profissional especializado) e o depoimento especial, diretamente ao delegado ou juiz, mas em ambiente favorável à criança e ao adolescente, devidamente preparado para isso, eliminando-se, por certo, a oitiva em salas comuns de delegacia e fóruns. Deverá haver infraestrutura para garantir o sigilo do ato.
O ideal, segundo o art. 11, é a colheita do depoimento uma única vez, em produção antecipada de prova judicial, garantida a ampla defesa do investigado, o que certamente é um benefício a todos, visto que a mente (e a memória) infanto-juvenil trabalha com fantasias e ficções, que podem mesclar-se com o fato ocorrido quanto mais o tempo passar. Impõe-se o depoimento especial em produção antecipada de provas em duas situações: a) criança ou adolescente menor de 7 anos; b) casos de violência sexual. Não vemos óbice a que o delegado represente ao juiz para que, também noutras situações, haja a colheita antecipada e única da prova.
Estabelece o art. 12 o seguinte procedimento para o depoimento especial: a) “I – os profissionais especializados esclarecerão à criança ou o adolescente sobre a tomada do depoimento especial, informando-lhe os seus direitos e os procedimentos a serem adotados e planejando sua participação, sendo vedada a leitura da denúncia ou de outras peças processuais”; b) “II – é assegurada à criança ou ao adolescente a livre narrativa sobre a situação de violência, podendo o profissional especializado intervir quando necessário, utilizando técnicas que permitam a elucidação dos fatos”; c) “III – no curso do processo judicial, o depoimento especial será transmitido em tempo real para a sala de audiência, preservado o sigilo”; d) “IV – findo o procedimento previsto no inciso II deste artigo, o juiz, após consultar o Ministério Público, o defensor e os assistentes técnicos, avaliará a pertinência de perguntas complementares, organizadas em bloco”; e) “V – o profissional especializado poderá adaptar as perguntas à linguagem de melhor compreensão da criança ou do adolescente”; f) “VI – o depoimento especial será gravado em áudio e vídeo”.
A aplicação desse rito pressupõe o grau de entendimento e amadurecimento da criança, pois de nada adiantará explicar a um menino de 1 a 2 anos, por exemplo, seus direitos no tocante àquele depoimento. Observa-se que, no momento do depoimento especial, transmite-se o seu inteiro teor em tempo real para a sala de audiência, onde deverão estar o membro do MP, o advogado e o acusado. Pode-se indagar: e o juiz? Ora, segundo dispõe o art. 8o desta Lei, é justamente quem ouve a criança. Quando se cuida de terceiro (psicólogo, por exemplo) denomina-se escuta especializada. Emerge um conflito aparente de normas, pois o procedimento do art. 12, para a coleta do depoimento especial, insere um outro profissional no caminho, entrando em choque com o disposto no referido art. 8o. Quem ouve, afinal, a criança ou adolescente no depoimento especial? Para complicar, o § 1o, do art. 12, ainda menciona: “à vítima ou testemunha de violência é garantido o direito de prestar depoimento diretamente ao juiz, se assim o entender”. Reforça-se o entendimento de que o depoimento especial é tomado pelo profissional especializado, o que não se coaduna com a própria definição lançada no art. 8o.
Segundo nos parece, para a formação do convencimento do magistrado, este pode participar, sim, do depoimento especial, juntamente com o profissional especializado. Do contrário, haverá um tradutor designado para a criança ou jovem, por vezes desnecessário e até mesmo cerceando-se a defesa do acusado. Adota-se, sempre, a regra do depoimento especial correr em segredo de justiça (art. 12, § 6o).
Em face disso, nasce um novo delito, previsto nesta Lei, no art. 24: “violar sigilo processual, permitindo que depoimento de criança ou adolescente seja assistido por pessoa estranha ao processo, sem autorização judicial e sem o consentimento do depoente ou de seu representante legal. Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa”. Os sujeitos ativos possíveis para tal crime são o juiz e o profissional da escuta especializada, pois são as pessoas diretamente ligadas à criança ou adolescente, podendo franquear acesso à sala onde se encontram. O sujeito passivo é a criança ou adolescente. O crime é doloso. Tutela-se a integridade moral e a formação psicológica da criança ou adolescente. Lembre-se que a permissão para violar o sigilo processual, autorizando que terceiro esteja na mesma sala ou em sala para onde segue a transmissão, depende de autorização judicial somada ao consentimento do depoente (se tiver compreensão para dar) ou de seu responsável legal (quando não tiver ainda noção do que significa o ato).
Pode-se inclusive criar Varas Especializadas para vítimas menores de 18 anos. Espera-se que a vacatio legis de um ano proporcione a adaptação dos distritos e fóruns dentro do perfil da nova lei para receber crianças e adolescentes como vítimas ou testemunhas.
Conheça a obra “Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado“