Em recente decisão, a 2ª. Turma do Supremo Tribunal Federal (HC 88.914-SP, rel. Cezar Peluso, 14.08.2007, v. u.) houve por bem conceder a ordem de habeas corpus para anular um processo, onde se realizou o interrogatório por meio de videoconferência. Entendeu-se prejudicada a ampla defesa, garantia fundamental do acusado. Temos sustentado essa posição tanto em nosso Código de Processo Penal comentado (nota 11 ao art. 185) como no Manual de Processo Penal e Execução Penal (item 7.6 do Cap. XIV), com base, justamente, no direito à ampla defesa (art. 5º, LV, CF), buscado demonstrar a necessidade de haver contato pessoal entre o réu, mormente o preso, e o magistrado. O ideal seria, ainda, existir a identidade física do juiz, vale dizer, o mesmo magistrado que ouvir o acusado, em interrogatório, ficaria vinculado ao feito, devendo julgá-lo.
Afinal, o interrogatório é o momento formal e solene de manifestação da autodefesa, corolário natural do princípio constitucional da ampla defesa, subdividido em defesa técnica e autodefesa. O contato pessoal soa-nos essencial para que as relações humanas não se percam, podendo o juiz analisar o comportamento do interrogando, se sincero ou falso, se tranqüilo ou ansioso, enfim, como se mostra diante do julgador. Esse é, aliás, o motivo de existência da acareação, quando se coloca frente a frente testemunhas com depoimentos contraditórios e outras partes envolvidas no processo, a fim de se tentar extrair a verdade dos fatos.
É lógico que, preferindo manter-se em silêncio, não há o que perguntar, nem mesmo necessidade haveria de estar diante do magistrado. Porém, essa hipótese é a exceção e não a regra. O acusado que optar por fazer uso do direito ao silêncio poderá, por seu defensor, expressar ao juiz esse intuito antes mesmo do comparecimento em audiência. Ficaria, naturalmente, dispensado de ser formalmente interrogado, salvo quanto à sua qualificação, caso o magistrado tenha alguma dúvida a seu respeito.
No mais, preferindo falar, basta que passemos os olhos pelo art. 187 do Código de Processo Penal para verificarmos a importância do contato pessoal (face a face) entre réu e juiz. Existem várias perguntas a formular ao interrogando, inclusive algumas de ordem pessoal (“meios de vida ou profissão”, “oportunidades sociais”) e outras intrinsecamente vinculadas à imputação que lhe foi feita (“se tem algum motivo particular a que atribuí-la, se conhece a pessoa ou pessoas a quem deva ser imputada a prática do crime”, “todos os demais fatos e pormenores que conduzam à elucidação dos antecedentes e circunstâncias da infração”, “se tem algo mais a alegar em sua defesa”). São particularidades melhor apreendidas em contato pessoal. Deveria o magistrado que interroga fazer constar no termo as expressões (faciais e corporais em geral) do réu e as impressões colhidas por quem ouve. Tornaria a peça processual mais rica em detalhes e possibilitaria ao Tribunal, no futuro, ter semelhante visão acerca do conteúdo das palavras do interrogando.
Evidentemente, se pensarmos em interrogatórios pobres e escassos de perguntas e respostas, voltados, muitas vezes, ao fato principal e nada mais (“matou ou não”, “subtraiu ou não” etc.), nem mesmo em juízo precisaria ser feito. Bastaria o réu mandar por escrito ou seu advogado peticionar no mesmo sentido.
Caminhamos, é verdade, a largos passos em direção ao processo informatizado, o que pode representar um enorme avanço para o combate à lentidão do Poder Judiciário. Aplausos a isso. No entanto, como se fará a inquirição de uma testemunha fundamental para o deslinde da controvérsia posta em juízo? Por videoconferência? Se assim ocorrer, muito de suas expressões e manifestações pode perder-se. E, aberta a porta para o vídeo, nada impede que haja o depoimento por escrito (quiçá, por e-mail). Se formos adeptos unicamente da celeridade, será incontestável: nada seria mais rápido. No entanto, conseguiríamos desmascarar a testemunha mentirosa? Em um depoimento por escrito, lido e relido antes de ser enviado, muito dificilmente. Por meio de um vídeo, à distância, seria fácil ou a situação tornar-se-ia mais delicada?
Existem cursos educacionais de todos os níveis à distância, sem o contato pessoal entre professor e aluno. Em alguns casos, há sucesso e o aluno triunfa, adquirindo o grau de conhecimento desejado. Pode-se, entretanto, perguntar se essa é a regra. Parece-nos que não. A insubstituível presença do professor em sala de aula, frente a frente com seus alunos, bem como a interação nas atividades do cotidiano de aprendizado jamais serão, convenientemente, supridas por uma conferência à distância. Se fosse pela facilidade e celeridade, bastaria ter um aparelho de televisão em casa. O Estado montaria um estúdio e praticamente todas as crianças teriam aulas, sem qualquer problema. De suas próprias casas acompanhariam as lições e fariam prova. Pode até ser o destino reservado pelo futuro, mas, se assim ainda vai ocorrer, por que começar logo pelo interrogatório do acusado? Está ele em situação delicada, muitas vezes desejando narrar, efetivamente, ao juiz seus sentimentos e sensações, fazer denúncias, pedir algum tipo de socorro ou auxílio. Estaria confortável, promovendo uma denúncia de tortura ou ameaça, a quilômetros de distância de quem ouve? A singela presença de um defensor público ao seu lado, mas estranho ao réu, não seria suficiente. Quem já esteve frente a frente com uma lente captando sua imagem que o diga. Alguns reagem bem e são naturais. Outros ficam constrangidos e perdem a naturalidade. Uma simples foto pode deixar uma pessoa desconfortável. Por isso, o “olho no olho”.
Há interrogatórios feitos por precatória, sem dúvida. Porém, não deixa de existir um contato pessoal entre o juiz e o acusado. Se o magistrado da Comarca a quem se solicitou o cumprimento da precatória for diligente, colherá todas as impressões obtidas do réu do mesmo modo, fazendo inserir no termo. O contato humano continua preservado.
Em casos excepcionais, poder-se-ia utilizar a videoconferência (ex.: o réu está em outro País e o juiz brasileiro precisa ouvi-lo com urgência). No mais, parece-nos precoce padronizar tal situação. Ademais, nunca é demais lembrar que não há lei federal tutelando o assunto. À ausência de lei, não pode o operador do Direito alterar as regras processuais previstas no Capítulo III do Título VII do Código de Processo Penal. Nem se diga que, no Estado de São Paulo, há lei estadual prevendo essa possibilidade (Lei 11.819/05), pois não se trata de mero procedimento, mas de regra processual, estreitamente ligada ao direito de defesa. Portanto, parece-nos inconstitucional tal norma.
Em suma, nos momentos mais difíceis, que hoje enfrentamos, quando o processo penal sofre toda sorte de ranhuras e açoites, refletindo-se no direito de defesa, preferimos continuar fiéis ao interrogatório pessoal, caso o réu se abstenha do direito ao silêncio. Nada mais justo, nada mais natural, nada mais que o devido processo legal.