O princípio penal da intervenção mínima (ou da subsidiariedade), próprio e adequado ao Estado Democrático de Direito, exige que o Direito Penal constitua o braço estatal derradeiro para a solução dos conflitos emergentes em sociedade. Por isso, denomina-se, ainda, como a última opção (ultima ratio) do legislador para intervir, coercitivamente, impondo, quando necessário, a punição merecida ao infrator. Entretanto, observa-se, com o passar dos anos – e já atingimos duas décadas de vigência da Constituição Cidadã de 1988 –, a crescente criminalização de condutas, muitas delas inócuas e supérfluas no contexto geral, associada à omissão legislativa para efetuar uma autêntica limpeza no sistema normativo penal, eliminando todas as figuras em desuso. A dupla medida – cessar a constante edição de leis penais incriminadoras e a supressão dos denominados crimes esquecidos – é imperiosa para que se faça valer e sentir a face fidedigna da democracia brasileira.
A doutrina penal, majoritariamente, proclama tal necessidade, insistindo em demonstrar a impertinência de uma legislação criminalizadora inflacionada e potencialmente ineficaz. Porém, não foi o suficiente, até agora, para sensibilizar o Poder Legislativo, que, muitas vezes, irmanado ao Executivo, entende que a solução para os antigos problemas ainda não resolvidos e para os novos recentemente surgidos é a edição, pura e simples, de novéis leis penais. Ora a força criadora de tipos incriminadores prevalece; ora a elevação de penas e a extirpação de direitos e garantias fundamentais se delineiam.
Somos levados a manifestar, mais uma vez, o nosso inconformismo diante desse estado legiferante desenfreado. Sob outro prisma, quando leis e mais leis são editadas, em lugar de provocar qualquer ganho à sociedade, terminam por acarretar, várias vezes, conflitos e ilogicidades no já sofrido sistema penal, deixando perplexos os operadores do Direito.
O Código Penal, contando já com mais de sessenta anos de existência, sofreu uma reforma ampla na Parte Geral (Lei 7.210/84) e experimentou inúmeras inserções na Parte Especial, sem que se tivesse o cuidado de reformulá-lo por inteiro. O uso excessivo das figuras desdobradas tem sido retrato fiel da Parte Especial, como, por exemplo, os artigos 168-A (apropriação indébita previdenciária), 216-A (assédio sexual), 313-A (inserção de dados falsos em sistema de informações), 313-B (modificação ou alteração não autorizada de sistema de informações), 319-A (prevaricação em relação ao uso de celular em presídio), 337-A (sonegação de contribuição previdenciária), 337-B, 337-C e 337-D (crimes cometidos por particular contra a administração pública estrangeira), 359-A ao 359-H (crimes contra as finanças públicas).
À falta de revisão estrutural do Código Penal, vários novos tipos incriminadores são lançados, ainda, em legislação especial, como as figuras de crimes contra idosos (Estatuto do Idoso), crimes contra crianças e adolescentes (Estatuto da Criança e do Adolescente), crimes relacionados a drogas ilícitas (Lei Antidrogas), crimes de porte, uso e posse de arma de fogo (Estatuto do Desarmamento), crimes contra a ordem tributária, econômica e relações de consumo (Lei 8.137/90), dentre tantos outros.
Ademais, remanesce, praticamente intocada, a vetusta Lei de Contravenções Penais, contendo tipos incriminadores antiquados e em desuso. Não se pode sustentar que, atualmente, torna-se relevante utilizar o Direito Penal, como ultima ratio, para punir condutas como “arremessar ou derramar em via pública, ou em lugar de uso comum, ou de uso alheio, coisa que possa ofender, sujar ou molestar alguém” (art. 37, LCP). Derramar algo na via pública com a potencialidade de sujar alguém é algo insípido para o cenário criminal. Possa-se manter tal figura, querendo, como mera infração administrativa, sujeita a simples multa e nada mais. Porém, movimentar a máquina judiciária, ainda que se trate do Juizado Especial Criminal, é deveras ousado para tal contravenção. Há vários outros exemplos: “emissão de fumaça, vapor ou gás” (art. 38); “provocação de tumulto ou conduta inconveniente” (art. 40); “perturbação do trabalho ou do sossego alheio” (art. 42) – neste último caso, até o Supremo Tribunal Federal já foi levado a se reunir para deliberar acerca do alcance da referida contravenção penal (HC 85.032, 2005), o que nos parece inadequado para o apregoado direito penal mínimo.
Não bastasse, há, ainda, as contravenções que são inconstitucionais e estão no limbo jurídico. Inexiste palco para se punir, na atualidade, a vadiagem (art. 59, LCP) ou a mendicância (art. 60, LCP). A liberdade de expressão e de ação, quando não ofensivas a direito alheio, devem ser resguardadas a qualquer custo. Jamais se pode utilizar o braço forte do Estado, instrumentalizado pelo Direito Penal, para intervir nessa liberdade de escolha. Qual o problema se alguém quiser vadiar? Ou se optar por viver da caridade alheia, mendigando? Nenhum reflexo grave se pode extrair para a sociedade. Nem mesmo infração administrativa pode se caracterizar. Muito menos uma infração penal.
Em suma, a época presente deve voltar-se à sistematização democrática do Direito Penal, respeitado o princípio constitucional da intervenção mínima, garantindo-se, acima de tudo, a dignidade da pessoa humana, meta maior da nossa Constituição Cidadã.