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A Regionalização do Processo Penal

Inaugurando a nossa participação no espaço reservado aos temas de Processo Penal no conceituado periódico Carta Forense, muito pensamos acerca do primeiro tema a ser desenvolvido. Poderíamos tecer considerações em relação a qualquer assunto, constante do Código de Processo Penal. Qual seria o primordial? Chegamos à conclusão de não haver um tema específico principal, porém nos surgiu à mente um debate que propusemos nas últimas edições dos nossos Código de Processo Penal comentado e Manual de processo penal e execução penal. Seria viável ressuscitarmos a regionalização do processo, particularmente em relação ao processo penal?

Abrimos, então, a nossa troca de idéias com essa questão. Relembramos, para tanto, as nossas andanças por várias regiões do imenso Brasil, em congressos, encontros em faculdades de direito e conferências proferidas, tanto nas Escolas de Aperfeiçoamento das carreiras jurídicas, como em cursos de pós-graduação. Em muitos locais, ouvimos relatos surpreendentes de operadores do Direito, particularmente na região norte do país, onde as dimensões territoriais são realmente extremadas.

Como fazer uma citação de maneira célere no Estado do Amazonas, por precatória, expedida em Manaus para ser cumprida em longínqua cidade do interior? Como vencer a época da seca dos rios (meio de transporte comum na região)? Se o réu estiver preso na Capital, como atingir a rápida finalização da instrução, caso haja dependência da prova a ser produzida em outra Comarca? Muito se debate, atualmente, na doutrina e na jurisprudência, em relação a qual seria a razoável e justa duração para a instrução criminal, considerando-se tanto as situações de réus presos, como também o aspecto ligado à prescrição. As soluções, para um país de dimensões continentais como o Brasil, podem ser padronizadas? Seria este o ideal ou a melhor solução estaria na busca de propostas alternativas, conforme as peculiaridades locais?

O processo, unificado, com regras válidas para todo o Brasil, nos dias de hoje, não vem atendendo às peculiaridades regionais de um Estado de dimensões continentais e diversidades culturais nítidas.

Logicamente, quanto às normas fundamentais de processo penal, mormente as que estão, expressamente, previstas na Constituição Federal, devem ser mantidas em caráter geral. Todas as regras que disserem respeito aos direitos e garantais humanas fundamentais precisam valer, igualmente, em todo o Brasil. Exemplo disso: ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, excluídas as transgressões militares e outros delitos propriamente militares (art. 5º, LXI, CF).

Outras regras, entretanto, precisariam ser regionalizadas, como, por exemplo, os procedimentos e seus prazos. Cada Estado poderia elaborar as suas particulares normas para citação, intimação e realização de audiências.

Sob outro prisma, quanto à produção de provas, o exame de corpo de delito pode ser de simples realização em cidades aparelhadas; entretanto, pode transformar-se em um grande problema em vilarejos sem o menor instrumental. Por isso, o disposto no art. 158 do CPP pode não ter nenhuma valia nesses locais, quando se verificar, na prática, a realização de constatações da materialidade do crime, erguidas em bases totalmente diversas das previstas no Código de Processo Penal. No caso concreto, no entanto, o criminoso não pode ficar impune. O que se faz se, em determinada Comarca (ou vilarejo), não se dispõe de perito e nem mesmo de duas pessoas portadoras de diploma de curso superior, como preceitua o art. 159, § 1º, do CPP? Em muitos casos concretos, improvisa-se, mas, com certeza, não se efetiva um exame de corpo de delito (perícia), ainda que a infração penal deixe vestígios materiais. Dir-se-á: usemos o disposto no art. 167 do CPP (“não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta”). Ora, em muitas situações, os vestígios não desapareceram, mas há carência para se conseguir a prova pericial. Valeriam os depoimentos testemunhais? A impossibilidade do Estado em providenciar o exame pericial equivale ao desaparecimento dos vestígios?

Tivemos conhecimento de casos em que populares fotografaram o cadáver, com suas câmaras, entregando as fotos à polícia, que somente chegou ao local meses depois do crime ter sido praticado, quando a vítima já tinha sido enterrada e o corpo já não comportava a perícia adequada (aliás, inexistente na região). Tais fotografias, tiradas por particulares, supririam o exame de corpo de delito?

Em síntese, sem pretender apresentar as soluções definitivas para as questões levantadas, parece-nos viável que uma reforma processual penal contemplasse, em vários aspectos, a regionalização das normas processuais penais.

Nota-se não ser suficiente o disposto no art. 22, parágrafo único, da Constituição Federal, nem tampouco o preceituado no art. 24, I, X e XI, também da Constituição Federal. Os Estados-membros não têm poder para legislar contra o disposto em lei federal, como é o caso do Código de Processo Penal, mas somente em caráter suplementar, se autorizados por Lei Complementar, ou nas poucas matérias especificadas no art. 24.

Por isso, caberia ao legislador, em nível federal, buscar flexibilizar o Código de Processo Penal, mantendo normas básicas e fundamentais para todo o Brasil, mas deixando ao critério de cada Estado legislar sobre matéria de seu peculiar interesse e conforme cada caso concreto (v. g., procedimentos, produção de provas, prazos, nulidades, dentre outros temas). Se em países que constituem autêntica Federação, como os Estados Unidos, sem a imensa concentração de poderes detida pela União, até mesmo os Códigos Penais são estaduais, não há motivo para unificar o processo penal brasileiro como se todos os Estados-membros fossem – e devessem ser – parcelas idênticas de um todo uniforme. Para a reflexão do leitor, do operador do Direito e, sobretudo, do legislador.