Outro dia, deparei-me com a afirmação de um aluno acerca dessa nova modalidade de sentença, denominada autofágica (canibal), que caiu em certo concurso público.
Minha primeira reação foi rir. Depois, captando a angústia do mencionado aluno, pedi detalhes. Logo imaginei que a proposta deveria ter partido do Dr. Hannibal Lecter, o canibal mais famoso, do filme “O Silêncio dos Inocentes”. Mas não… Lamentavelmente, tratava-se de uma colocação JURÍDICA a respeito.
Surpreso, notei que autofagia não faz parte do vocabulário do Direito, significando o “ato de nutrir-se da própria carne”. Por este caminho, localizei a descoberta do mecanismo da autofagia pelo cientista Yoshinori Ohsumi, que conquistou o Prêmio Nobel de Medicina. A autofagia, que vem do grego e significa “comer a si mesmo” é um processo conhecido desde os anos 1960. Ohsumi identificou os genes essenciais da autofagia nos anos 1990, ao fazer um experimento com lêvedo e demonstrar que nossas células utilizavam um mecanismo similar (veja aqui!).
Eduardo C. F. Chiela, na UFRGS, ingressa no assunto: “autofagia é um processo celular fisiológico para degradação e reciclagem de componentes do citosol e organelas celulares danificadas, para manutenção da homeostase celular em condições adversas como privação de nutrientes, presença de patógenos e toxinas. Porém, quando o processo ultrapassa um determinado limiar pode levar ao processo de morte autofágica ou morte celular programada tipo II. E este parece ser o mecanismo de ação de algumas drogas utilizadas na prática clínica oncogênica, como a temozolomida e a rapamicina” (veja aqui!).
PORTANTO, nem sei quem inventou essa terminologia absurda – sentença autofágica – mas convém averiguar o sentido disso. Diz-se que seria a sentença que condena o réu, mas, ao mesmo tempo, reconhece a ocorrência da prescrição concreta e, logo, depois, extingue a punibilidade. Então, a mesma sentença condenaria o acusado e, depois, mutilar-se-ia, devorando-se com a extinção da punibilidade. Com a devida vênia, há um erro técnico nesse argumento.
O julgador não pode, na mesma decisão, aplicar a pena e já considerar prescrita a pretensão punitiva pela pena concreta. Das duas, uma: a) o juiz constata a prescrição abstrata e proclama somente a extinção da punibilidade; b) o juiz aplica uma pena e nota que, SE o MP não recorrer, pode dar ensejo à prescrição. Enfim, precisa deixar transitar para a acusação. Depois, por uma questão de economia processual, declara extinta a punibilidade em outra decisão. Ou seja, não houve decisão canibal, que devorou outra.
Outro exemplo seria a consideração do perdão judicial. Verifica o juiz que o réu causou o acidente e provocou a morte de seu filho (homicídio culposo); mentalmente, condena-o; porém, na prática, extingue a punibilidade por concessão do perdão judicial. Outra decisão canibal? Condena-se e devora-se a condenação (uau!). Errado. O STJ já pacificou o entendimento de que se trata de mera sentença declaratória de extinção da punibilidade pela concessão do perdão (Súm. 18). Podemos até entender que a natureza jurídica da sentença concessiva do perdão é condenatória, pois o sujeito é culpado, mas fica isento da pena. No entanto, isso não representa canibalismo. Quer dizer, apenas, que prevalece, na sentença, a extinção da punibilidade.
EM SUMA: inventar uma terminologia como essa – sentença autofágica – venha de onde vier é somente uma meta de provocar tombos (injustos) a candidatos a concursos públicos e exames de Ordem. Parece, isto sim, uma imoralidade administrativa: quem coloca essa tolice como pergunta num concurso público sério, onde impera a igualidade, está levando a avaliação do candidato para um terreno particular, vale dizer, dirigindo o estudo dos alunos a certo doutrinador, que inventou tal designação. Vale uma representação e uma ação judicial, questionando-se a lisura do certame público. Na verdade, um desafio fica lançado: qual operador do direito, em exercício das suas atividades no Brasil, necessitou dessa bobagem de sentença autofágica para resolver um problema jurídico sério em seu processo? Cremos que nenhum.
Conheça as obras do autor (Clique aqui!)