Os crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes constituem número expressivo dos casos em julgamento nos tribunais brasileiros. A maior parte deles encaixa-se no tipo penal do art. 217-A (estupro de vulnerável), cuja tutela se volta ao menor de 14 anos.
Esses delitos são considerados camuflados, pois cometidos em lugares distantes da observação do público, geralmente dentro de quatro paredes. E mais: as vítimas, por vezes, nem mesmo sabem se expressar na linguagem normal.
O ponto relevante concentra-se na colheita das declarações de vítimas infanto-juvenis. Há vários elementos a considerar: a) o grau de veracidade dessas declarações; b) o trauma gerado à vítima pela própria colheita em juízo; c) o confronto entre a palavra da criança ou adolescente e do réu adulto; d) a consideração de princípios constitucionais, nesse cenário, como o da prevalência do interesse do acusado.
Quanto ao primeiro aspecto, sabe-se que a criança costuma fantasiar e criar histórias, fruto natural do processo de amadurecimento, motivo pelo qual, eventualmente, pode encaixar a situação vivida com o acusado nesse contexto fictício, aumentando e dando origem a fatos não ocorridos, mas também narrando, com veracidade, o acontecimento. Discernir entre a realidade e a fantasia é tarefa complexa e, por vezes, quase impossível. Por isso, deve o magistrado considerar a declaração fornecida pelo infante como prova relativa, merecendo confrontá-la com as demais existentes nos autos, a fim de formar a sua convicção.
Sob outro aspecto, há pais ou responsáveis pela criança, que a induzem a narrar eventos não ocorridos ou a apontar o réu como autor de crime sexual, quando, na verdade, inexistiu malícia ou libidinagem entre eles. O infante, para agradar o adulto, termina confirmando os fatos induzidos, embora não corresponda à realidade.
Nem todos os adultos assim agem e, por óbvio, nem toda criança falseia a verdade, provocando a culpa do agente, onde não existe. Muitas declarações correspondem exatamente ao que aconteceu, mas nem por isso se deve deixar de tomar a cautela da harmonização com outras evidências processuais.
Quanto ao adolescente, suas declarações podem ser mais confiáveis, a depender do modo de vida e de seu comportamento geral.
Outro elemento é o trauma gerado pelo crime, que pode reproduzir-se em juízo, novamente, quando a vítima for obrigada a relatar, em ambiente formal, ao juiz, o drama pelo qual passou. Em relação a isso, aponta-se, como solução, o denominado depoimento sem dano (DSD), colhido em sala especial, por psicólogo ou assistente social, acompanhado, por vídeo, em tempo real, pelo magistrado e pelas partes. As perguntas à criança (ou adolescente) seriam feitas por intermédio de outro profissional, poupando a vítima de exposição pública ou, pelo menos, de estar diante do ambiente austero da sala de audiências.
Pode ser um método criativo de contornar o problema, evitando que a criança (ou adolescente) sofra a pressão natural do depoimento formal, em ato processual solene. Entretanto, não cremos deva se tornar regra obrigatória aos juízes, dependendo de cada caso concreto. Uma criança em tenra idade (5 anos, por exemplo) pode abrir-se mais facilmente diante do profissional de psicologia; uma criança com 11 anos, entretanto, pode ter condições de se manifestar diretamente ao juiz. Ademais, a eventual obrigatoriedade do sistema estaria em desarmonia com a capacidade do Judiciário, em todas as Comarcas, de adotar os mecanismos para a sua concretização.
Outro lado do tema envolve o confronto direto entre a palavra da criança ou adolescente e a do réu. Não se deve adotar uma postura absoluta, sob nenhum prisma: prevalece sempre a da vítima, porque o acusado sempre mente; prevalece sempre a palavra do réu, porque ele é adulto. A regra é a valoração desse confronto, feita pelo magistrado, com o auxílio interpretativo das partes, extraindo-se das entrelinhas de ambos os declarantes os dados relevantes para a solução do feito.
Há contradições de ambos os lados, a explorar em contraste com as demais provas coletadas, chegando-se à conclusão de quem forneceu a versão mais plausível, independentemente de ser vítima ou réu.
No mais, embora sejam graves os delitos sexuais contra a criança e o adolescente não se pode olvidar o princípio constitucional da prevalência do interesse do réu (in dubio pro reo), que inspira e norteia o processo penal. Portanto, em caso de confronto integral entre a palavra da vítima e a do acusado, sem maiores dados probatórios, deve-se promover a absolvição.
(Artigo originário do desenvolvimento do tema na obra Crimes contra a dignidade sexual)