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Igualdade no Cenário da Autoincriminação

 

Desde os primeiros anos acadêmicos, na faculdade de direito, toma-se conhecimento do princípio da igualdade, vale dizer, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (art. 5º, caput, CF). A igualdade deve ser plena quando se está comparando indivíduos em situação similar. Afinal, quando as pessoas se encontrarem em condições diferentes, deve ingressar o princípio da isonomia: tratar desigualmente os desiguais. Esqueça-se a isonomia nesta caso; tratemos da igualdade.

Desde que o Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97) foi editado, venho defendendo a inconstitucionalidade do art. 305. In verbis: “Afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída:  Penas – detenção, de seis meses a um ano, ou multa”. Esse Código já se encontra em vigor há mais de duas décadas. De lá até o presente, alguns Tribunais brasileiros (RS, MG, SP) reconheceram a inconstitucionalidade desse artigo por ferir o direito à não autoincriminação. Sempre considerei lógica e razoável essa conclusão.

Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, em 14 de novembro de 2018, proclamou, em Plenário, por maioria de votos, a constitucionalidade do referido art. 305 do CTB. Os argumentos lançados pela maioria vencedora concentraram-se nos seguintes tópicos: a) o direito à não autoincriminação, como vários outros, não é absoluto, comportando flexibilização; b) o delito do art. 305 fere a administração da justiça, caso o sujeito fuja do local do acidente; c) ficar no local não significa se autoincriminar, pois o indivíduo pode permanecer em silêncio; d) no trânsito, há milhares de mortes, com gastos astronômicos, demonstrativos de situação caótica; e) ficar no lugar do acidente pode até favorecer a defesa, porque permite que o agente dê a sua versão dos fatos.

Acredito em todas essas assertivas, apenas em tese. No plano concreto, devemos levantar os seguintes óbices: a) embora os direitos e garantias individuais não sejam absolutos, eles precisam de um patamar mínimo de segurança para que tenham efetividade. Exigir que o autor do crime fique no local e se entregue, permitindo-se a sua identificação, sob pena de responder por outro delito, é algo excessivo, que ultrapassa a relativização do direito fundamental, não somente ao silêncio, mas à garantia de não se autoincriminar. Cometer um delito e ser obrigado a se apresentar à autoridade policial para identificação significa, automaticamente, dar ao Estado, de presente, a prova da autoria. De que adianta ficar em silêncio? Se a tese defensiva poderia ser a negativa de autoria, termina-se com esse arsenal de pronto; b) sem dúvida, o crime do art. 305 fere a administração da justiça, porque não poderia lesar nada mais que isso. No entanto, qualquer furto, por menor que seja, ao ferir o patrimônio, se fosse conjugado ao dever do agente de permanecer no local para sua identificação, estaria ferindo, no segundo caso, a administração da justiça. Ocorre que, em nenhum delito do Código Penal e outras leis penais especiais existe a figura do dever de autoincriminação, leia-se, autoidentificação. A pretensa lesão à administração da justiça (ínsita ao art. 305, CTB) é totalmente oposta ao direito à não autoincriminação. Não fosse assim, poderíamos ter o crime de falso testemunho abrangendo as declarações do réu, como ocorre em outros países, desde que o acusado resolva depor, algo inexistente no Brasil; c) ninguém pode duvidar de que o agente, depois de se identificar para a autoridade, desvendando-se por completo a autoria, pode ficar em silêncio. Afinal, o principal (autoria) já está conhecido; d) a situação caótica no trânsito brasileiro pode ser associada, com extrema facilidade, ao imenso grau de criminalidade dolosa. No Brasil, cuida-se de uma questão de alta indagação: mata-se mais no trânsito ou no cotidiano? Em ambos os cenários, estima-se o volume imenso de mortes. Logo, esse dado estatístico, para o nosso país, é inócuo, como justificativa para liberar a aplicação do referido art. 305; e) permanecer no lugar pode dar ensejo a uma boa defesa, pois se pode ouvir a versão do acusado. Podemos dizer: sem dúvida, desde que ele queira, em primeiro lugar, identificar-se, pois o conhecimento da autoria é o primeiro passo para a punição. Ora, a maioria das teses, nos crimes de homicídio, é a negativa de autoria, bastando consultar os anais dos júris brasileiros. Então, o argumento não nos parece convincente.

De todo o exposto, verifica-se o seguinte: 1) tem-se admitido ambas as formas de elemento subjetivo nos crimes de trânsito: dolo e culpa; logo, não se trata simplesmente de dizer que se está no contexto de delitos culposos (quando o agente não quer atingir o resultado); 2) qualquer outro autor de delito, doloso ou culposo, previsto no Código Penal (ou em leis especiais), pode simplesmente abandonar o cenário do crime, justamente para não ser identificado; 3) os índices de criminalidade (elevados ou baixos) nunca se ligaram ao direito de defesa e muito menos à garantia de direitos fundamentais, como evitar a autoincriminação; 4) a contar que a administração da justiça é o principal foco, há de se criar um tipo incriminador geral, para todos os delitos: ausentar-se do local é crime.

Imagine-se o sujeito que passa com seu veículo em cima da vítima para matá-la, atuando com dolo direto. Um homicídio previsto no art. 121 do Código Penal. Ele pode fugir à vontade, que não responderá por outro crime. Agora, visualize-se o sujeito que, disputando um racha, com dolo eventual, atropela e mata um pedestre. Ele também vai responder pelo art. 121 do Código Penal, mas não pode ausentar-se da cena do delito, do contrário acabará respondendo pelo delito do art. 305 do CTB. O STF não fez qualquer diferença entre ambos os exemplos dados.

No entanto, vamos separar ainda mais. Um sujeito atropela, culposamente, o pedestre, matando-o, e foge para evitar a sua identificação e consequente punição. Encontrado, não somente responderá pelo homicídio (art. 302, CTB), mas igualmente pelo crime do art. 305 do mesmo CTB. Noutro prisma, o indivíduo atropela, com dolo direto, a vítima e foge para evitar a identificação. Ingressa no art. 121 do Código Penal e nada mais. Por que o primeiro é obrigado a se identificar, prejudicando a sua defesa (negativa de autoria) e o segundo, não? E a igualdade de todos perante a lei?

Ademais, o STF, mesmo sabendo que já se admite o dolo eventual no contexto dos crimes de trânsito não fez nenhuma referência ao tema. Pode-se então deduzir que o condutor que tenha atropelado fatalmente a vítima, com dolo eventual, encontra-se no limbo… Pode fugir ou não? (para fins de responder pelo art. 305, CTB).

Levando-se a situação ao extremo, pode-se perguntar: por que um tratamento mais danoso ao autor de crime culposo? Quem atropela culposamente, matando a vítima, deve ficar no local, sob pena de responder por outro delito. Quem mata, dolosamente, a vítima está livre para fugir, ocultando-se, sem chance de responder por outro crime, por conta disso.

A igualdade de todos perante a lei é, segundo nos parece, o parâmetro nesta situação. Por isso, o art. 305 do CTB é inconstitucional.

No entanto, levando-se em consideração o novel julgado do STF, insta-se o legislador a criar o delito apropriado para todos os outros crimes do Código Penal e da legislação especial: “afastar-se o agente, do local do crime, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída:  Penas – reclusão, de um a seis anos, e multa”. O tipo penal incriminador nasceria com o aval do Pretório Excelso, conforme os argumentos já utilizados. Seria uma proposta para manter o princípio da igualdade, flexibilizando-se o direito à não autoincriminação, nos exatos termos da decisão proferida pelo STF.

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