Quer-se crer tenha havido a denominada interpretação evolutiva acerca de determinada norma, porque, no ano de 2015, emergiu um “direito fundamental” que estava hibernando há décadas – o que não é pouco tempo. Esse é o tempo em que vigora, desde 1992, no País, a Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica). Nem vem ao caso de onde, exatamente, partiu tal ideia, mas ela foi aplaudida por vários juristas.
O ponto crucial é a interpretação dada ao art. 7º (direito à liberdade pessoal), item 5: “(…) toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável (…)”.
Muito bem esclarece Raphael Melo, Audiência de custódia no processo penal, p. 141-142: “não se trata de algo totalmente inédito em nosso ordenamento jurídico. A apresentação obrigatória do preso ao juiz já era estipulada para a prisão realizada em período eleitoral (art. 236, do Código Eleitoral, Lei 4.737/65), nos casos de prisão executada sem a apresentação do mandado judicial nos crimes inafiançáveis (art. 287 do CPP), na hipótese de pedido de prorrogação do prazo para a conclusão do inquérito policial de indiciado preso, no âmbito da Justiça Federal (art. 66, parágrafo único, da Lei 5.010/66) e na apreensão de adolescente infrator por determinação judicial (art. 171 da Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA). Também já era prevista a apresentação do preso, mas como mera possibilidade, na prisão em flagrante pela prática de infrações de menor potencial ofensivo (art. 69 e parágrafo único da Lei 9.099/95) e pela prática do crime de porte para uso de drogas (art. 48, § 2º, da Lei 11.343/2006). Além destas hipóteses, o preso sempre deve ser apresentado em virtude de determinação judicial, sobretudo para verificar a legalidade da prisão e o respeito à sua integridade física, como previsto, inclusive, no procedimento do habeas corpus (art. 656 do CPP) e em caso de prisão temporária (art. 2º, § 3º, da Lei 7.960/89). Contudo, tais dispositivos legais tratam apenas da apresentação do preso ao juiz, não estabelecendo, propriamente, a realização de uma audiência de custódia, com seu procedimento, suas finalidades e com a presença do defensor e do promotor”.
No Brasil, a prisão em flagrante é feita, como regra, por policiais militares (polícia ostensiva, segundo a CF), que encaminham o preso à autoridade policial para a lavratura do auto de prisão em flagrante, se entender cabível. Sempre se considerou que o delegado, bacharel em Direito, concursado, tinha condições de analisar a legalidade da prisão, em primeira avaliação – situação não encontrada em outros países. A autoridade policial pode não somente relaxar a prisão, soltando o detido, como pode estabelecer fiança, sob determinados parâmetros. Eis a autoridade com funções similares à da autoridade judiciária.
Em suma, a primeira classificação do caso (tipificação) é feita pelo Delegado: se furto ou roubo, por exemplo. Ele analisa se cabe ou não o flagrante (art. 302, CPP); caso entenda não ser cabível recolher o preso, pode relaxar o flagrante e não o levar ao cárcere, soltando-o (art. 304, CPP). Formando a sua convicção no sentido de caber a prisão em flagrante, o Delegado ainda pode arbitrar fiança, que, uma vez paga pelo preso, o liberta de pronto (art. 322, CPP). Em nosso modesto entendimento, trata-se de uma autoridade com funções típicas do juiz (pode prender; pode soltar).
Mesmo assim, segundo o disposto no art. 306, § 1º, do CPP, o juiz teria, em suas mãos, o auto de prisão em flagrante, em 24 horas, analisando-o para manter a prisão, relaxá-la ou conceder liberdade provisória ao investigado. Nunca se ocultou o preso; não se decretava a prisão fora das hipóteses constitucionais (flagrante ou ordem judicial); não se pretendeu evitar que o juiz tomasse conhecimento do caso. Porém, a partir de 2015, passou-se a sustentar que o preceituado pelo art. 7º, item 5, da Convenção Americana dos Direitos Humanos, não vinha sendo cumprido. Eis o nascimento da audiência de custódia, que foi regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça, com o aval do Supremo Tribunal Federal e, após a Lei 13.964/2019, ingressou no Código de Processo Penal.
Com o passar do tempo, verificar-se-á que a audiência de custódia não vai solucionar o problema da superpopulação dos presídios (algo que depende de investimento do Poder Executivo), pois não será a presença do preso diante do juiz que incentivará esta autoridade a soltá-lo. Cada magistrado deve basear-se nas provas constantes do auto de prisão em flagrante para saber se cabe preventiva ou liberdade provisória (ou relaxamento da prisão).
Sob outro aspecto, não será a apresentação do preso ao juiz que fará cessar eventual tortura policial, ocorrida no momento da prisão. Isto somente diminuiria com a punição efetiva de maus policiais e depende de provas, que não são conseguidas na audiência de custódia. Aliás, para argumentar, sem a audiência de custódia, o preso sempre teve direito a advogado, que poderia representar contra policiais abusivos e exigir a apuração de crime de tortura ou de abuso de autoridade.
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Trecho extraído da obra Curso de Direito Processual Penal, Ed. Forense, 22ª Edição, 2025.
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