O Direito Penal sempre se pautou pelo critério da retribuição ao mal concreto do crime com o mal concreto da pena, segundo as palavras de Hungria. A evolução das ideias e o engajamento da ciência penal em outras trilhas, mais ligadas aos direitos e garantias fundamentais, vêm permitindo a construção de um sistema de normas penais e processuais penais preocupado não somente com a punição, mas, sobretudo, com a proteção ao indivíduo em face de eventuais abusos do Estado. O cenário das punições tem, na essência, a finalidade de pacificação social, muito embora pareça, em princípio, uma contradição latente falar-se, ao mesmo tempo em punir e pacificar. Mas é exatamente assim que ainda funciona o mecanismo humano de equilíbrio entre o bem e o mal. Se, por um lado, o crime jamais deixará de existir no atual estágio da sociedade, em países ricos ou pobres, por outro, há formas humanizadas de garantir a eficiência do Estado para punir o infrator, corrigindo-o, sem humilhação, com a perspectiva de pacificação social.
O Estado chamou a si o monopólio punitivo – medida representativa, a bem da verdade, de civilidade. A partir disso, não se pode permitir que alguns firam interesses de outros sem a devida reparação. E, mais, no cenário penal, é inviável que se tolere determinadas condutas lesivas, ainda que a vítima permita (ex.: tentativa de homicídio).
Há valores indisponíveis, cuja preservação interessa a todos e não somente a um ou outro indivíduo (ex.: meio ambiente). Portanto, se “A” destruir uma floresta nativa, existente na propriedade de “B”, não cabe ao Estado perguntar a este último se deve ou não punir o agente infrator. O interesse é coletivo. A punição estatal, logo oficial, realizada por meio do devido processo legal, proporciona o necessário contexto de Estado Democrático de Direito, evitando-se a insatisfatória e cruel vingança privada.
A Justiça Retributiva sempre foi o horizonte do Direito Penal e do Processo Penal.
Despreza-se, quase por completo, a avaliação da vítima do delito. Obriga-se, quase sempre, a promoção da ação penal por órgãos estatais, buscando a punição do infrator. Leva-se às últimas consequências a consideração de bens indisponíveis, a ponto de quase tudo significar ofensa a interesse coletivo. Elimina-se, na órbita penal, a conciliação, a transação e, portanto, a mediação. Em suma, volta-se a meta do Direito Penal a uma formal punição do criminoso como se outros valores inexistissem.
A denominada Justiça Restaurativa, aos poucos, instala-se no sistema jurídico-penal brasileiro, buscando a mudança do enfoque supramencionado. Começa-se a relativizar os interesses, transformando-os de coletivos em individuais típicos, logo, disponíveis. A partir disso, ouve-se mais a vítima. Transforma-se o embate entre agressor e agredido num processo de conciliação, possivelmente, até, de perdão recíproco. Não se tem a punição do infrator como único objetivo do Estado. A ação penal passa a ser, igualmente, flexibilizada, vale dizer, nem sempre obrigatoriamente proposta. Restaura-se o estado de paz entre pessoas que convivem, embora tenha havido agressão de uma contra outra, sem necessidade do instrumento penal coercitivo e unilateralmente adotado pelo Poder Público.
Parece-nos que o estudioso do Direito Penal e Processual Penal precisa debruçar-se sobre os caminhos a seguir nesse dicotômico ambiente de retribuição e restauração. No entanto, deve fazê-lo de maneira objetiva, aberta, comunicando-se com a sociedade e, acima de tudo, propondo meios e instrumentos eficientes para se atingir resultados concretos positivos. Por vezes, nota-se a atuação legislativa vacilante e ilógica, atormentada pela mídia e pela opinião pública, sem qualquer critério científico ou, no mínimo, razoável.
A Justiça Restaurativa pode ser um ideal válido para a Política Criminal brasileira nos campos penal e processual penal, mas, sem utopias e abstendo-se o jurista (bem como o legislador que o segue) de importar mecanismos usados em países com realidades completamente diferentes da existente no Brasil.
Há crimes que merecem punição, com foco voltado mais à retribuição do que à restauração (ex.: homicídio, extorsão mediante sequestro, tráfico ilícito de drogas). Outros, sem dúvida, já admitem a possibilidade de se pensar, primordialmente, em restauração (ex.: crimes contra a propriedade, sem violência; crimes contra a honra; crimes contra a liberdade individual).
Nenhuma solução em favor desta ou daquela Justiça (retributiva ou restaurativa) pode ser absoluta. Se a retribuição, como pilar exclusivo do Direito Penal e do Processo Penal, não se mantém como ideal, não será a migração completa para a restauração que proporcionará a tão almejada situação de equilíbrio.
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Trecho extraído da obra Manual de Direito Penal – Volume Único, Ed. Forense, 21ª Edição, 2025.
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