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O crime de estupro sob o prima da lei 12.015/09

(ARTIGOS 213 E 217-A DO CÓDIGO PENAL)

 

GUILHERME DE SOUZA NUCCI – COORDENADOR

Livre-docente em Direito Penal pela PUC/SP. Doutor e Mestre em Processo Penal pela PUC/SP. Professor concursado de Direito Penal da PUC/SP. Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ciências Criminais da PUC/SP. Juiz em Segundo Grau, atuando como Desembargador na Seção Criminal do Tribunal de Justiça de S. Paulo.

JAMIL CHAIM ALVES

Mestre em Direito Penal pela PUC/SP. Doutorando em Direito Penal pela PUC/SP. Vice-líder do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ciências Criminais da PUC/SP. Magistrado em São Paulo.

RAFAEL BARONE

Mestrando em Direito Penal pela PUC/SP. Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ciências Criminais da PUC/SP. Assessor jurídico do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

JULIANA BURRI

Mestranda em Direito Penal pela PUC/SP. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ciências Criminais da PUC/SP. Advogada em São Paulo.

PATRÍCIA CUNHA

Bacharel em Direito pelas Faculdades Metropolitanas Unidas. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ciências Criminais da PUC/SP. Advogada em São Paulo.

RAPHAEL ZANON

Bacharel em Direito pela PUC/SP. Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ciências Criminais da PUC/SP. Advogado em São Paulo.

RESUMO: A nova lei 12.015/2009 trouxe profundas modificações no Título VI da parte especial do Código Penal, observando-se maior preocupação com a dignidade da pessoa humana e com o combate às diversas espécies de violência sexual. No tocante ao crime de estupro, destaca-se a junção das condutas anteriormente previstas nos artigos 213 e 214 do CP em um único tipo penal, que passa a ser misto alternativo, abrindo-se a possibilidade de se reconhecer continuidade delitiva em relação às referidas condutas. As hipóteses anteriormente previstas no artigo 224 do CP receberam tipificação exclusiva no artigo art. 217-A, que trata do estupro de vulnerável. A vulnerabilidade das pessoas elencadas no referido dispositivo é relativa, de modo que a capacidade para consentir com a prática do ato sexual deve ser analisada concretamente.

PALAVRAS-CHAVE: atentado violento ao pudor – crimes contra a dignidade sexual – estupro – Lei 12.015/09 – vulnerável

ABSTRACT: The new Law 12.015/09 led to profound changes in Title VI of the Brazilian Criminal Code, with a greater concern for human dignity and the fight against various kinds of sexual violence. Concerning the crime of rape, stands out the junction of conducts under articles 213 and 214 of the Criminal Code in a single article, which becomes mixture alternative, opening the possibility of recognize continuing crime in connection with such conducts. The hypotheses previously planned in article number 224 of the Criminal Code were arranged in article under the number 217-A, which the subtitle is rape of vulnerable. The vulnerability of the persons listed in that device is relative, so that the capacity to consent to the practice of the sexual act must be examined case by case.

KEYWORDS: indecent assault, crimes against the sexual dignity, rape, Law 12.015/09, vulnerable

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. O crime de estupro: modificações trazidas pela nova redação do artigo 213 do Código Penal – 2.1. Sujeitos ativo e passivo – 2.2. Consumação e tentativa – 2.3. Tipo misto alternativo e continuidade delitiva – 2.4. Sucessão de leis penais – 2.5. Formas qualificadas – 2.6. Lei dos Crimes Hediondos – 3. Estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal) – 3.1. Vulnerabilidade – 3.1.1. Menores de 14 anos – 3.1.2. Enfermos e deficientes mentais – 3.1.3. Outras causas pelas quais não se possa oferecer resistência – 3.2. Erro de tipo – 4. Conclusão – 5. Bibliografia.

1. INTRODUÇÃO

A nova Lei 12.015/2009 trouxe inúmeras modificações no Título VI da Parte Especial do Código Penal, que tratava dos “crimes contra os costumes”, passando a denominá-los “crimes contra a dignidade sexual”.

Referida alteração de nomenclatura indica, desde logo, que a preocupação do legislador não se limita ao sentimento de repulsa social a esse tipo de conduta, como acontecia nas décadas anteriores, mas sim à efetiva lesão ao bem jurídico em questão, ou seja, à dignidade sexual de quem é vítima deste tipo de infração.

A novel legislação se preocupou, principalmente, com o respeito à dignidade da pessoa humana, pilar do Estado Democrático de Direito, pois não há dúvidas sobre a intensidade da violação que as vítimas dessa espécie de infração sofrem, observando-se a tentativa de combate às diversas espécies de violência sexual, não reguladas de forma eficaz pela legislação anterior.

Uma das mais importantes alterações trazidas pela Lei 12.015/09 – e que trouxe profundas consequências – refere-se à junção, em um único tipo penal, das condutas anteriormente previstas no art. 213 e 214 do Código Penal, que agora estão previstas sob a rubrica estupro, no artigo 213 do Código Penal.

De outra banda, as hipóteses de estupro de vulnerável, antes tratadas genericamente pelos artigos 213 e 214 combinados com o art. 224, ambos do Código Penal, receberam tipificação exclusiva através das alterações provenientes da Lei 12.015 de 10 de agosto de 2009, estando agora previstas no artigo art. 217-A.

O título estupro de vulnerável, antes inexistente, abarca não só a conjunção carnal, como quaisquer outros atos libidinosos, em consonância com a atual definição de estupro da nova Lei, trazida pela redação do art. 213, conferindo-lhe maior alcance e amplitude. Entretanto, mais uma vez o legislador, ao criar tal dispositivo, propiciou indefinições a serem sanadas pela doutrina e jurisprudência, sendo a principal delas a definição de vulnerabilidade, da qual surgem outras incertezas quanto ao grau da enfermidade, deficiência, idade e, ainda, quanto aos limites que cercam as duvidosas outras causas que impossibilitem o oferecimento de resistência.

É mister, assim, que se faça uma análise dos novos tipos penais, confrontando o novo regramento com as disposições anteriores à reforma, de modo a fixar o alcance dos atuais dispositivos, bem como esclarecer suas consequências e hipóteses de aplicação.

2. O CRIME DE ESTUPRO: MODIFICAÇÕES TRAZIDAS PELA NOVA REDAÇÃO DO ARTIGO 213 DO CÓDIGO PENAL

2.1. SUJEITOS ATIVO E PASSIVO

Antes da Lei 12.015/09, o sujeito ativo do crime de estupro era apenas o homem. Tratava-se, assim, de crime próprio, exigindo do agente uma especial qualidade de fato. A mulher podia figurar como sujeito ativo apenas excepcionalmente, quando, por exemplo, fosse autora mediata, ou quando agisse em concurso com um homem, nos moldes do art. 29 do Código Penal. Quando a vítima fosse do sexo masculino, sendo a mulher a autora, poderia se caracterizar o crime de constrangimento ilegal ou atentado violento ao pudor.

O sujeito passivo, por seu turno, era apenas a mulher, em razão de expressa previsão legal. Assim, se uma mulher obrigasse um homem a manter com ela conjunção carnal, não se aplicaria o art. 213, respondendo aquela, no mais das vezes, por constrangimento ilegal, que é delito subsidiário.

Já o atentado violento ao pudor, contemplado no artigo 214 (hoje revogado), classificava-se como crime comum, podendo ser praticado por homem ou por mulher. O sujeito passivo, igualmente, podia ser o homem ou a mulher.

A ideia vigente no passado era de que as consequências do crime para o homem seriam menos gravosas que para a mulher. É o que se depreende, por exemplo, das palavras de Nelson Hungria, discorrendo, à época, sobre o tema: “Pode-se criticar a lei porque limitou a noção de estupro (…), mas não pretender que seja aplicada ao arrepio do seu texto (…). Mesmo a crítica, porém, não procede. O valor social do homem é muito menos prejudicado pela violência carnal do que a mulher, de modo que, em princípio, não se justifica, para o tratamento penal, a equiparação dos dois casos. Quando tal violência contra mulher resulta na cópula vagínica, e ainda que não se trate de virgo intacta, pode acarretar o engravidamento consequência tão grave, no caso, que a lei autoriza a prática do aborto (…), embora este represente um sério perigo à saúde, quando não à vida da paciente”[1].

Em boa hora, a Lei 12.015/09 alterou sensivelmente o tema, permitindo que tanto o homem quanto a mulher possam ser sujeitos ativo ou passivo do crime de estupro. Logo, se uma mulher obrigar um homem a manter com ela conjunção carnal ou outro ato libidinoso, serão tais indivíduos, respectivamente, sujeito ativo e passivo de estupro. Atualmente, portanto, o estupro passa a ser classificado como crime comum, inexigindo qualquer qualidade do sujeito ativo ou passivo.

A possibilidade de uma mulher constranger um homem à conjunção carnal era algo provavelmente impensável na década de 40. De fato, mesmo nos dias de hoje, a ocorrência da hipótese é bastante rara. Cremos que isto se deve não apenas à baixa incidência desta forma de estupro, mas também porque o crime, quando ocorre, permanece na clandestinidade, já que dificilmente algum homem se exporia ao constrangimento de comunicar tal agressão às autoridades[2].

Embora a alteração tenha sido recebida com surpresa e até perplexidade por parte da doutrina, não se trata propriamente de uma novidade no direito comparado, eis que tal solução já é adotada em outros países, tais como Argentina, Colômbia, Portugal e Venezuela.

Ainda no tocante ao sujeito passivo, são irrelevantes, para a incidência do artigo 213, os aspectos envolvendo a moralidade da vítima, podendo esta ser uma prostituta ou, também, um garoto de programa. Destarte, “é irrelevante à existência do estupro o estado ou qualidade da vítima: solteira, casada, virgem ou não, honesta, devassa ou prostituta, porque, em qualquer caso, tem a mulher direito à tutela da lei, visto que a proteção se dirige ao direito de livre disposição do próprio corpo”[3].  “Não importa seja a vítima solteira, casada ou viúva, uma vestal inatacável ou uma meretriz de baixa formação moral. Em qualquer hipótese é ela senhora de seu corpo e só se entregará livremente, como, quando, onde e a quem for de seu agrado”[4].

Ainda sobre o tema, leciona Guilherme de Souza Nucci que, em relação ao sujeito passivo, deve-se considerar qualquer mulher – honesta ou desonesta, recatada ou promíscua, virgem ou não, casada ou solteira, velha ou moça, embora nem sempre tenha sido assim. O Código Penal de 1830 fazia distinção entre o estupro cometido contra “mulher honesta” e a violência sexual praticada contra prostituta. Enquanto no primeiro caso era aplicável pena de prisão de três a doze anos, no segundo era cominada sanção consideravelmente mais branda, de um mês a dois anos (artigo 222). No Código Penal de 1890, manteve o legislador a discriminação, mencionando que o estupro havia de ter como sujeito passivo a mulher honesta, ainda que não fosse virgem. A pena era de um a seis anos. Se fosse praticado contra mulher “pública” ou prostituta, a pena seria de seis meses a dois anos (artigo 268). Atualmente, conclui o autor, “tanto faz ser a mulher honesta ou não – aliás, o mínimo que se espera de uma lei justa”[5].

Outro aspecto merecedor de nota, apontado por Rogério Sanches Cunha, refere-se ao fato de que, após a reforma, a gravidez resultante de atos libidinosos diversos da conjunção carnal passa a ser alcançada diretamente pela permissão do aborto sentimental, previsto no artigo 182, inciso II, do Código Penal, não se fazendo mais necessária a utilização de analogia[6].

2.2. CONSUMAÇÃO E TENTATIVA

A consumação do estupro, quando praticado na modalidade conjunção carnal, ocorre com a introdução do pênis na vagina, ainda que parcial. Já as hipóteses envolvendo outros atos libidinosos se consumam com a prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal. Assim, os toques lascivos que antecedem a cópula vaginal, por exemplo, já serão suficientes à consumação do delito do art. 213. Destarte, o estupro passa a ser um crime de forma livre, ao contrário do que ocorria anterior, em que se classificava delito de forma vinculada, pois só podia ser cometido por conjunção carnal[7].

O delito admite tentativa, que ocorrerá quando o indivíduo, por circunstâncias alheias à sua vontade, não conseguir praticar a conjunção carnal ou outro ato libidinoso. É preciso, todavia, que fique caracterizada a intenção do agente de praticar o referido delito.

2.3. TIPO MISTO ALTERNATIVO E CONTINUIDADE DELITIVA

Antes da Lei 12.015/09, a doutrina e jurisprudência assinalavam que a prática de estupro e atentando violento ao pudor implicavam concurso material de infrações. Assim, se o indivíduo submetesse a vítima à conjunção carnal, e, em seguida, a coito anal, responderia pelas penas dos artigos 213 e 214 somadas. Neste sentido, decidiu o STF, pouco antes da reforma, que “não há falar em continuidade delitiva dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor”[8].

Apenas admitia-se que alguns atos fossem absorvidos pelo estupro, entendidos como atos de mera preparação do delito, como toques no corpo da vítima. A respeito: “”Há absorção do delito de atentado violento ao pudor pelo de estupro se os atos de libidinagem praticados na vítima, resultando em manchas hematosas no seio, na face e no pescoço, podem ser abrangidos no conceito geral de proeludia coiti, ou seja, fazem parte da ação física do próprio delito de estupro, não configurando crime autônomo”[9].

Guilherme de Souza Nucci foi um dos primeiros autores a apontar a radical mudança trazida pela Lei 12.015/09, entendendo que, após o advento desta, o art. 213 passou a se caracterizar como crime de ação múltipla ou tipo penal misto alternativo, ou seja, a prática de uma, duas ou mais condutas descritas na norma representam um único crime. Assim, quando a conduta for praticada no mesmo contexto fático e contra a mesma vítima, não caberia o concurso material de infrações. Neste modo, o núcleo do tipo é singular, sendo caracterizado pelo verbo constranger. A pluralidade de condutas não implicaria pluralidade de crimes, diferentemente do que ocorria até então[10]. Como conseqüência, entende-se que tal norma é lei penal benéfica, e, como tal, retroagirá para beneficiar todos os casos anteriores.

Em contraposição a esta corrente, Vicente Greco Filho, no artigo intitulado “Uma interpretação de duvidosa dignidade”, passou a sustentar que o artigo 213 do Código Penal, com a nova redação, é, em realidade, um tipo penal misto cumulativo. Assim, explica o autor, “se, durante o cativeiro, houve mais de uma vez a conjunção carnal, pode estar caracterizado o crime continuado entre essas condutas; se, além da conjunção carnal houve outro ato libidinoso, como os citados, coito anal, penetração de objetos, etc., cada um desses caracteriza crime diferente, cuja pena será cumulativamente aplicada ao bloco formado pelas conjunções carnais. A situação em face do atual art. 213 é a mesma do que na vigência dos antigos 213 e 214, ou seja, a cumulação de crimes e penas se afere da mesma maneira, se entre eles há, ou não, relação de causalidade ou consequencialidade. Não é porque os tipos agora estão fundidos formalmente em um único artigo que a situação mudou. O que o estupro mediante conjunção carnal absorve é o ato libidinoso em progressão àquela e não o ato libidinoso autônomo e independente dela, como no exemplo referido. Não houve, pois, abolitio criminis, ou a instituição de crime único quando as condutas são diversas. Em outras palavras, nada mudou para beneficiar o condenado cuja situação de fato levou à condenação pelo art. 213 e art. 214 cumulativamente; agora, seria condenado, também, cumulativamente à primeira parte do art. 213 e à segunda parte do mesmo artigo. Por todos esses argumentos e em respeito ao espírito da lei e à dignidade da pessoa humana, essa é a única interpretação possível, eis que, inclusive, respeita a proporcionalidade. Não teria cabimento aplicar-se a pena de um único estupro isolado se o fato implicou na prática de mais de um e de mais de uma de suas modalidades, a conjunção carnal e outros atos libidinosos autônomos”[11].

Em matéria recentemente veiculada em jornal de grande circulação, apontou-se, com grande alarde, que interpretação diversa, reconhecendo a existência de tipo misto alternativo, beneficiaria estupradores. A deputada Maria do Rosário, relatora da lei, chegou a afirmar que a interpretação dos juízes está errada, e que a lei pode até ser alterada caso haja necessidade. “A intenção da legislação é proteger meninos e meninas de estupros. E estabelecer, para a sociedade, que existem várias formas pelas quais o estupro ocorre”[12].

Uma semana após a referida publicação, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu que o novo crime de estupro é um tipo misto cumulativo, ou seja, as condutas de constranger alguém a conjunção carnal e a outro ato libidinoso, mesmo que praticadas contra a mesma vítima e no mesmo contexto fático, devem ser punidas individualmente se o agente praticar ambas, somando-se as penas. O Ministro Felix Fischer aduziu que “se praticada uma penetração vaginal e outra anal, neste caso jamais será possível a caracterização da continuidade”, tendo em vista que “a execução de uma forma nunca será similar a da outra. São condutas distintas”. De acordo com o Ministro, o reconhecimento de tipo misto alternativo enfraquece a proteção da liberdade sexual, porque sua violação é crime hediondo que deixa marca permanente nas vítimas.

A Ministra Lauria Vaz acompanhou o referido voto, apontando que “antes da edição da Lei n. 12.015/2009, havia dois delitos autônomos, com penalidades igualmente independentes: o estupro e o atentado violento ao pudor. Com a vigência da referida lei, o art. 213 do Código Penal passa a ser um tipo misto cumulativo. (…) tendo as condutas um modo de execução distinto, com aumento qualitativo do tipo de injusto, não há a possibilidade de se reconhecer a continuidade delitiva entre a cópula vaginal e o ato libidinoso diverso da conjunção carnal, mesmo depois de o legislador tê-las inserido num só artigo de lei”[13].

Nota-se, portanto, que tal entendimento não acarretaria mudanças na jurisprudência relacionada à prática do estupro e do antigo atentado violento ao pudor, tendo em vista que continuaria a ser aplicado o antigo cúmulo material, porém agora se daria com fulcro no artigo 213, primeira parte, e artigo 213, segunda parte, em concurso material.

Parece-nos que esta posição é insustentável. Veja-se que, nos tipos mistos cumulativos, as condutas são separadas por “;” ou “e”, cujo exemplo é o delito previsto no artigo 244 do Código Penal (abandono material). Em tais casos, a prática de mais de uma conduta descrita no tipo dá ensejo ao cúmulo material de penas.

No recém criado artigo 213, por outro lado, existe uma oração alternativa, pois as condutas de constranger alguém a “ter conjunção carnal” e a “praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” estão separadas pela expressão “ou”. A simples leitura do recém criado artigo 213 demonstra, à evidência, tratar-se de tipo misto alternativo.

Neste passo, decidiu a Des. Salete Silva Sommariva (2ª Câmara Criminal do TJSC) que, “a propósito do princípio da reserva absoluta de lei formal em matéria penal (CF/88, art. 5º,XXXIX), o atributo da tipicidade mista alternativa é de imperioso reconhecimento no caso da sucessão legislativa em foco, uma vez que houve uma patente instituição de fungibilidade entre as condutas justapostas no novo art. 213 do estatuto repressivo, vislumbrada a partir de sua disposição plurinuclear e pelo emprego do termo ‘ou’ – ‘[…] a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso’ –, encerrando, por isso mesmo, um conteúdo variado, mas com a restrição no sentido de que mesmo em havendo a prática de mais de uma das condutas descritas – numa mesma situação fática – o agente responde apenas por um delito. Assim, a Lei n. 12.015/2009, ao conferir nova redação ao artigo 213 do Código Penal, instituiu a tipicidade mista alternativa, cuja aplicação repele a possibilidade de concurso de crimes entre o estupro e o atentado violento ao pudor em suas redações pretéritas, de ordem a inviabilizar a dupla punição”[14]. Este posicionamento já começa a ganhar força na jurisprudência, a qual, tudo indica, tende a se pacificar neste sentido[15].

Não merece guarida a alegação de que o reconhecimento de tipo misto alternativo enfraqueceria a proteção da liberdade sexual, porque sua violação é crime hediondo que deixa marca permanente nas vítimas. Tem-se, em verdade, uma construção sofista. De fato, alguns crimes ligados à violação da liberdade sexual estão elencados como hediondos, e não se duvida que, em muitos casos, deixem graves sequelas nas vítimas. Tais constatações, todavia, não guardam pertinência com a discussão em tela, pois o grau de proteção que a norma confere ao bem jurídico e o tipo de transtorno psicológico que a infração causa ao ofendido não são critérios válidos para classificação do tipo penal como misto cumulativo ou alternativo.

Também não nos impressiona a tese de que o reconhecimento da continuidade delitiva deve ser afastado porque a prática de conjunção carnal e de outros atos libidinosos apresentam maneira de execução diversa. Por certo, ao referir-se a maneira de execução semelhante, a lei está a exigir a presença do mesmo modus operandi. Consoante lição de Cezar Roberto Bitencourt, maneira de execução é o modo, a forma, o estilo de praticar o crime, não exigindo a lei identidade, mas apenas semelhança[16]. A violência e a grave ameaça são o modo de execução do crime e não a forma final da prática do ato. Deve-se levar em conta que “conjunção carnal” e “outro ato libidinoso” são elementares do crime de estupro e que somente se chega ao verbo nuclear “constranger” através dos modos de execução violência ou grave ameaça[17]. Pode-se citar como exemplo o médico que, em determinada clínica, aproveita-se do momento em que as pacientes estão sedadas para seviciá-las, não se exigindo que inclusive os abusos cometidos sejam idênticos entre si.

Destarte, há grave equívoco ao se exigir, para reconhecimento de crime continuado, que todas as circunstâncias de cada delito se apresentem de modo idêntico.

Vale anotar que a principal razão utilizada para inadmitir a prática de crimes em continuidade, antes do advento da Lei 12.015/09, não era o fato do modo de execução ser diverso, mas sim por ser tratarem de crimes de espécie diversa, já que o estupro estava previsto no artigo 213 e o atentado violento ao pudor no artigo 214. Com a junção das duas condutas no mesmo tipo, tal argumento deixou de existir[18].

Por derradeiro, vale consignar a lição de Guilherme de Souza Nucci, ao acentuar que “a dignidade da pessoa humana está acima da dignidade sexual, pois esta é apenas uma espécie da primeira, que constitui o bem maior (art. 1o, III, CF). Logo, pretender alavancar a dignidade sexual acima de todo e qualquer outro bem jurídico significa desprestigiar o valor autêntico da pessoa humana, que ficaria circunscrita à sua existência sexual. O agente do crime sexual, portanto, deve ter todos os direitos respeitados, tal como o autor de qualquer outro delito grave. Particularmente, não se pode olvidar princípios-garantia, constitucionalmente previstos, em nome de um subjetivismo individualista e, por vezes, conservador, para a interpretação do novo art. 213. Visualizar dois ou mais crimes, em concurso material, extraídos das condutas alternativas do crime de estupro, cometido contra a mesma vítima, na mesma hora, em idêntico cenário, significa afrontar o princípio da legalidade (a lei define o crime) e o princípio da proporcionalidade, vez que se permite dobrar, triplicar, quadruplicar etc, tantas vezes quantos atos libidinosos forem detectados na execução de um único estupro”[19].

Assim, é possível, no máximo, discutir o acerto do legislador ao criar no art. 213 um tipo misto alternativo, mas jamais ignorar a nova redação do dispositivo. Aliás, a fórmula ora adotada é semelhante à que já existe em diversos outros países, como Portugal, Espanha e Venezuela[20]. Em nosso entender, a resistência ao fato de o legislador ter criado um tipo misto alternativo é resultado de um sentimento natural de repulsa que existe em relação ao estupro e aos crimes sexuais em geral. Não duvidamos da hediondez destes crimes, mas há vários outros delitos igualmente – ou até mais – graves. Da mesma forma que o estupro pode traumatizar a vítima, a extorsão mediante seqüestro também pode fazê-lo. Aliás, o próprio tráfico de drogas – tipo misto alternativo – é um dos mais torpes, provocando desassossego social e relacionado a inúmeros outros crimes, fomentados pela venda de drogas.

Assim, se o agente, no mesmo contexto fático e contra a mesma vítima, praticar sexo oral, conjunção carnal e coito anal, responderá por um só crime. Caberá ao magistrado, analisando o caso concreto, romper a “política da pena mínima” e elevar o montante da reprimenda. Sobre o tema, assevera Guilherme de Souza Nucci que o magistrado “não pode e não deve ficar restrito à aplicação compulsória da pena mínima (…). Afinal, o art. 59, mencionando oito elementos diversos, se fielmente cumprido, provoca a aplicação da pena em parâmetros diferenciados para os acusados submetidos a julgamento. A padronização é contrária à individualização da pena, princípio constitucional, de modo que é preciso alterar essa conduta ainda predominante”[21]

2.4. SUCESSÃO DE LEIS PENAIS

Pode-se afirmar que, no tocante ao artigo 213 do Código Penal, a Lei 12.015/09 é benéfica ao acusado, e, portanto, passível de aplicação retroativa. Conforme visto, a prática de conjunção carnal e ato libidinoso diverso da conjunção carnal, no mesmo contexto fático e contra a mesma vítima, representa agora crime único, evidentemente mais favorável à defesa no que a solução do cúmulo material, antes aplicada. Ademais, abre-se a possibilidade de reconhecimento de crime continuado, uma vez que tais condutas, à toda evidência, tornaram-se crimes de mesma espécie.

Outra não é opinião de Rogério Greco: “Hoje, após a referida modificação, nessa hipótese, a lei veio a beneficiar o agente, razão pela qual se, durante a prática violenta do ato sexual, o agente, além da penetração vaginal, vier a também, fazer sexo anal com a vítima, os fatos deverão ser entendidos como crime único, haja vista que os comportamentos se encontram previstos na mesma figura típica, devendo ser entendida a infração penal como de ação múltipla, aplicando-se somente a pena cominada no art. 213 do Código Penal, por uma única vez, afastando, dessa forma, o concurso de crimes”[22].

Ainda no tocante ao conflito de leis no tempo, vale frisar que a supressão do artigo 214 não representou abolitio criminis, encontrando-se a conduta de constranger alguém à prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal estampada no artigo 213. Com efeito, embora revogado o artigo 214, houve uma transferência de seu conteúdo para o artigo 213, operando-se a denominada continuidade normativo-típica. Consoante magistério de Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina:”não se pode nunca confundir a mera revogação formal de uma lei penal com a abolitio crimins. A revogação da lei anterior é necessária para o processo da abolitio criminis, porém, não suficiente. Além da revogação formal impõe-se verificar se o conteúdo normativo revogado não foi (ao mesmo tempo) preservado em (ou deslocado para) outro dispositivo legal. […] Logo, nessa hipótese, não se deu a abolitio criminis, porque houve uma continuidade normativo-típica (o tipo penal não desapareceu, apenas mudou de lugar). Para a abolitio criminis, como se vê, não basta a revogação da lei anterior, impõe-se sempre verificar se presente (ou não) a continuidade normativo-típica”[23].

Todavia, é de grande importância ressaltar a questão da mulher que constrange o homem à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça. Anteriormente à nova redação do artigo 213 do CP, o crime em questão não era previsto no capítulo “dos crimes contra a liberdade individual”, pois somente a mulher poderia ser sujeito passivo do crime do artigo 213. Todavia, na atualidade há previsão legal do delito de estupro para tal ato.

Com relação a esse fato houve uma novatio legis in pejus, não podendo ser aplicada aos fatos praticados anteriormente a vigência da lei 12015/09, ou seja, atualmente constranger homem, mediante violência ou grave ameaça caracteriza-se como estupro, e não mais como constrangimento ilegal, cuja a pena é inferior a atual pena de estupro.

2.5. FORMAS QUALIFICADAS

As qualificadoras do crime de estupro, antes previstas no artigo 223, estão agora contempladas no §s 1º e 2º do próprio artigo 213. O deslocamento topográfico mostra-se salutar, pois as formas qualificadas do delito encontram relação direta com o tipo principal, sendo desejável, portanto, que estejam previstas no mesmo artigo.

Assim prevêem os §s do artigo 213: “§ 1º – Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. § 2º – Se da conduta resulta morte: Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos”.

Uma mudança digna de nota refere-se ao fato de que a nova redação traz a expressão “se da conduta”. O primitivo artigo 223 previa: “Se da violência resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. § único. Se do fato resulta morte. Pena – reclusão, de 12 (doze) a 25 (vinte e cinco) anos”.

Muito se discutiu sobre a expressão “violência”, contida no caput do dispositivo, e fato, prevista no § único. A conclusão a que se chegou é que “violência” é expressão restrita, e não abrange as hipóteses em que a lesão corporal resultasse, por exemplo, da grave ameaça (ex.: vítima sofre um infarte diante da grave ameaça empreendida pelo agente). Já o termo “fato”, previsto no § único, seria mais abrangente, e contemplaria os casos em que a morte adviesse tanto de violência quanto de grave ameaça.

A nova redação do dispositivo pôs fim à discussão, prevendo, corretamente, que a qualificadora incidirá se “da conduta” advier as hipóteses previstas. Conduta é expressão abrangente e que não dá margem a dúvidas.

No tocante ao § 1º, nota-se que há duas hipóteses diversas. A primeira refere-se aos casos em que a conduta resultar em lesão corporal de natureza grave. Trata-se, portanto, de um crime qualificado pelo resultado. Outra hipótese trazida no § 1º refere-se a crime cometido contra vítima menor de 18 ou maior de 14 anos.

O § 2º prevê que o estupro é qualificado nos casos em que ocorrer a morte da vítima.

A questão que se coloca refere-se aos casos em que o resultado qualificador for proveniente de dolo da conduta do agente. Há quem entenda que, se o resultado qualificador for proveniente de culpa, aplica-se a forma qualificada. Se, todavia, for proveniente de dolo, “desarma-se” a qualificadora e aplicam-se as regras do concurso material de infrações. Por exemplo: o agente estupra a vítima e, culposamente, provoca-lhe a morte. Aplicar-se-ia, em tal caso, o artigo 213, § 2º, apenando-se o indivíduo com 12 a 30 anos de reclusão. Se, por outro lado, a morte adviesse de dolo na conduta, o agente responderia por estupro na sua forma simples, com pena de 6 a 10 anos, em concurso com o homicídio doloso, cujas penas, na modalidade simples, oscilam de 6 a 20 anos.

É o entendimento de Delmanto, para quem “na hipótese (pouco comum) de a lesão grave ou morte não resultar de culpa do agente, mas de seu dolo (direto ou eventual) de matar ou lesar gravemente a vítima, por sadismo, não se aplica este art. (…); haverá o crime do art. 213 (…) em concurso material com homicídio (qualificado pela torpeza do motivo) ou com lesão corporal grave ou gravíssima”[24].

A mesma doutrina, todavia, não adota a mesma solução no caso do latrocínio, por exemplo, crime em que se aplica a qualificadora do roubo quer o resultado advenha de culpa, quer de dolo.

Em nosso sentir, não há sentido nesta distinção. O melhor seria que se aplicasse a forma qualificada sempre, independente de dolo ou culpa. O fato de o resultado morte ocorrer em virtude de dolo ou culpa pode ser utilizado na dosimetria da pena.

A par das figuras qualificadas, não se pode olvidar que a pena do crime de estupro é aumentada de quarta parte, se o crime é cometido em concurso de duas ou mais pessoas, e de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela (art. 226, incisos I e II, do Código Penal).

2.6. LEI DOS CRIMES HEDIONDOS

Anteriormente à Lei 12.015/09, discutia-se se o estupro e o atentado violento ao pudor, quando praticados em sua forma simples, enquadravam-se ou não como crimes hediondos. A celeuma surgiu em razão da redação deficiente do artigo 1º da Lei 8.072/90, que dava margem às duas interpretações, ao prever serem hediondos o “estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e § único)” e o “atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e § único)”.

A Lei 12.015/09 mostra-se salutar também neste aspecto, estabelecendo, de forma clara, que são considerados hediondos o estupro (art. 213, caput e § primeiro e segundo) e o estupro de vulnerável (art. 217-A, caput e § 1º, 2º, 3º e 4º). Pouco importa, assim, se forem ou não qualificados, serão enquadrados como crimes hediondos.

Para aqueles que já entendiam que tais crimes, mesmo em sua forma simples, eram hediondos – corrente à qual nos filiamos -, não houve qualquer alteração, servindo a nova Lei apenas para esclarecer uma situação que já existia. Por outro lado, aqueles que entendiam não serem o estupro e o atentado violento ao pudor hediondos quando praticados em sua forma simples, a Lei 12.015 é prejudicial, não podendo retroagir, pois, para prejudicar os réus.

3. ESTUPRO DE VULNERÁVEL (ART. 217-A)

3.1. VULNERABILIDADE

Com o advento da Lei 12.015/09, optou corretamente o legislador por tutelar, em tipo penal autônomo, as pessoas cujo consentimento para a prática do ato sexual não se exterioriza de forma válida, afastando-se, assim, a tipificação por extensão dos artigos 213 e 214 combinados com o artigo 224 do Código Penal.

A expressão presunção de violência deu lugar ao termo vulnerável, mantendo-se o rol taxativo daqueles que, em tese, não possuem condições de consentir de forma válida com a prática sexual, seja ela a conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso.

À luz do caput do artigo 217-A e seu §1° do Código Penal, vulneráveis são os menores de 14 anos, os enfermos ou deficientes mentais, e aqueles que, por outra causa, não puderem oferecer resistência.

Não obstante a lei ter elencado os sujeitos passivos do crime, é de suma importância conceituar adequadamente o termo vulnerabilidade, a fim de se compreender o real alcance da norma em questão. Caso contrário, estaríamos diante de situações em que a presunção de incidência da norma seria considerada absoluta, de modo que bastaria a vítima, por exemplo, juntar ao processo sua certidão de nascimento, atestando idade inferior a 14 anos, para se configurar a vulnerabilidade. Não cremos ser esse entendimento mais acertado, conforme será analisado mais adiante.

Nesse sentido, a antiga discussão acerca da presunção de violência, se absoluta ou relativa, travada especialmente no campo da idade, não foi de toda afastada. A interpretação literal do recém editado artigo 217-A tem levado a conclusões precipitadas no sentido de que a antiga discussão sobre a natureza da presunção, se absoluta ou relativa, desapareceu, dando lugar à presunção iuris et de iure de vulnerabilidade das pessoas ali elencadas.

A fim de se desfazer tal equívoco, e, em respeito aos princípios constitucionais da intervenção mínima do direito penal, da ofensividade, do contraditório e da presunção de inocência, é que a vulnerabilidade, merecedora de tutela penal, deve ser compreendida de forma restrita e casuisticamente, tendo como essência a fragilidade e a incapacidade física ou mental da vítima, na situação concreta, para consentir com a prática do ato sexual.

Assim, com base nesse entendimento, analisaremos cada um dos sujeitos considerados vulneráveis à luz do novo dispositivo.

3.1.1. MENORES DE 14 ANOS

Mesmo antes das modificações trazidas pela Lei 12.015/09, havia presunção de violência quando a vítima não fosse maior de 14 anos, nos termos do artigo 224, alínea “a”, do Código Penal.

Veja-se que, tanto na doutrina como na jurisprudência prevalecia ser relativa tal presunção, conforme decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo : Estupro - Violência presumida – Vítima menor de 14 anos - Presunção, em razão da idade, que não é de caráter absoluto - Vítima que concordou, conscientemente, em relacionar-se sexualmente com o réu, em duas oportunidades, induzida pelo fato deste lhe ter dito que assumiria, bem como a transformaria em uma modelo - Ausência da inicentia consilii por parte da vítima, condição essencial para o reconhecimento da presunção de violência (artigo 224, "a", Código Penal), que é relativa - Absolvição decretada - Recurso provido”[25]. Também o Superior Tribunal de Justiça vinha decidindo que “a violência presumida prevista no núcleo do art. 224, ‘a’, do Código Penal, deve ser relativizada conforme a situação do caso concreto, cedendo espaço, portanto, a situações da vida das pessoas que afastam a existência da violência do ato consensual quando decorrente de mera relação afetivo-sexual. No caso dos autos, não se era de esperar que, iniciado o relacionamento entre jovens impúberes, e adquirida a maioridade por um deles, as relações sexuais, a partir daí, passassem a configurar a violência presumida só porque prevista a conduta na norma incriminadora”[26].

No entanto, a despeito do entendimento de outros Tribunais, o Supremo Tribunal Federal sempre se orientou em sentido contrário, atribuindo caráter absoluto à presunção de violência[27].

Com o advento da Lei 12.015/09, a hipótese passou a ser contemplada no art. 217-A, caput, que assim estabelece: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos. Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos”.

A lei considera que, pela tenra idade, tais indivíduos ainda não possuem maturidade sexual ou desenvolvimento mental completo para consentir com a prática do ato sexual, considerando-os, assim, vulneráveis.

Vale observar que não há qualquer parâmetro justificativo para a escolha em tal faixa etária, sendo tão somente uma idade escolhida pelo legislador para sinalizar o marco divisório dos menores que padecem de vício de vontade, a ponto de serem reconhecidos pelo status de vulneráveis, daqueles que possam vivenciar práticas sexuais sem impedimentos.

Verifica-se, pois, que a definição de patamar etário para a caracterização da vulnerabilidade é baseado numa ficção jurídica, que nem sempre encontrará respaldo na realidade do caso concreto, notadamente quando se leva em consideração o acentuado desenvolvimento dos meios de comunicação e a propagação de informações, que acelera o desenvolvimento intelectual e capacidade cognitiva das crianças e adolescentes.

Cremos que o legislador, ao editar o dispositivo em análise, afastou-se novamente da realidade social, vez que ignorou não só a precocidade das crianças e adolescentes, como persistiu em utilizar um critério etário para definir aqueles que em hipótese alguma podem manter relações sexuais. Por tais razões é que defendemos a relativização de sua vulnerabilidade.

Não se pode olvidar, ademais, que a atual Lei, tal como a anterior, mostra-se em total dissonância do que prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelecendo equivocadamente a idade de 14 anos para a iniciação sexual.

A esse respeito, bastante esclarecedor o voto proferido pelo Ministro Celso Limongi, tratando de hipótese em que um indivíduo com idade superior a trinta e dois anos havia mantido relações sexuais com adolescente de menos de catorze anos: “Em primeiro lugar, faz-se necessário relembrar que o Direito não deve ser estático, mas, por força das vertiginosas transformações sociais, nem sempre consegue acompanhá-las. Por isso, o Direito erige-se tantas vezes em óbice ao desenvolvimento da sociedade. (…) Parece claro que, quando se interpreta um Código Penal nascido em 1940, portanto, com 69 anos de idade, é preciso adequá-lo à realidade de hoje, levando em conta os valores da atualidade, para que as decisões sejam mais justas. O outro aspecto que merece destaque se prende a que, para a boa interpretação da lei, é necessário levar-se em consideração todo o arcabouço normativo, todo o ordenamento jurídico do País. A interpretação da lei não prescinde do conhecimento de todos os ramos do Direito. Uma visão abrangente desse arcabouço facilita – e muito – o entendimento e a interpretação da lei. Assim, em tal linha de raciocínio, o Estatuto da Criança e do Adolescente precisa ser analisado, para enfrentar a questão posta nestes autos, a de se saber se o estupro e o atentado violento ao pudor por violência presumida se qualificam como crimes e, mais, como crimes hediondos. É necessário levar em conta o Estatuto da Criança e do Adolescente, porque, pelo artigo 2° desse Estatuto, o menor é considerado adolescente dos 12 aos 18 anos de idade, podendo até sofrer medidas socioeducativas. (…) Imagine-se a hipótese de um jovem de 18 anos de idade que beije lascivamente sua namorada de 13 anos ou que com ela pratique alguns atos libidinosos não dos mais íntimos. Pela presunção de violência que o Código Penal de 1940 estabelece, pois a menor de 14 anos não dispõe de vontade válida, será esse jovem condenado a no mínimo 6 anos de reclusão! E o Código, ao presumir a violência por não dispor a vítima de vontade válida, está equiparando essa adolescente a uma pessoa portadora de alienação mental, o que, convenhamos, não é razoável. Isto, em pleno século XXI! A Constituição Federal importou do direito anglo-americano o princípio do devido processo legal na sua face substantiva, de modo que ela autoriza a aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, a permitir que o juiz hoje se inquiete com a injustiça da lei, a proporcionalidade dos encargos, a razoabilidade da lei, quando antes não era senão a voz da lei, o cego cumpridor da lei, o escravo da lei, um ser como que inanimado, como preconizava Montesquieu, preocupado, naquele contexto histórico em que viveu, com poder o magistrado interpretar a lei. (…) E, efetivamente, não se pode admitir no ordenamento jurídico uma contradição tão manifesta, a de punir o adolescente de 12 anos de idade, por ato infracional, e aí válida sua vontade, e considerá-lo incapaz, tal como um alienado mental, quando pratique ato libidinoso ou conjunção carnal. Isto, quando já se sabe que o adolescente de hoje recebe muito mais informações sobre sexo do que o adolescente da década de 1940… A interpretação da lei exige, de tal arte, coerência, harmonização das disposições legais, evitando interpretações que se contraponham.  (…) Aliás, fico com a sensação de que a menina de 14 anos de idade, à época do nascimento do Código Penal não era mais instruída sobre temas sexuais, do que a menina de 12 anos de hoje…”[28].

Discorrendo sobre o tema, Klelia Canabrava Aleixo acentua que, embora a Lei 12.015/09 tenha substituído a questão da moralidade pela tutela da dignidade e da liberdade sexual, o legislador continuou adotando uma postura proibitiva e moralista sobre a sexualidade infanto-juvenil, partindo da consideração de que o exercício da sexualidade pelos menores de 14 anos é irregular, desviante e deve ser objeto de proibição. A autora alude aos estudos de Matta e Correia, que, partindo do cotidiano da 12ª Promotoria Criminal de Fortaleza, verificaram que parte dos inquéritos lá existentes tinha como objetivo restringir a liberdade sexual de menores por escaparem ao modelo culturalmente aceito, por envolverem homossexualidade ou diferenças atinentes à classe, raça ou religião do parceiro.  E conclui a autora: “pensar a Proteção Integral afirmada no Estatuto da Criança e do Adolescente implica no reconhecimento de que crianças e adolescentes estão em condição peculiar de desenvolvimento, o que não as reduz à condição de objeto de intervenção. Assinalar a questão da responsabilidade no seio do direito à sexualidade não significa adotar uma perspectiva repressiva, calcada em juízos de natureza moral ou na sua negação, contrario sensu, implica em disponibilizar o acompanhamento e a orientação”[29].

Caso se aplique ao artigo 217-A uma interpretação meramente literal, poder-se-á chegar à absurda hipótese de se considerar como autor do crime de estupro um indivíduo de 18 anos que queira, por meio de casamento, constituir família com a menor de 14 anos que engravidou, ainda que haja o livre consentimento desta. Não se pode esquecer que o Código Civil, no artigo 1520, permite expressamente o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil, em caso de gravidez.

Nessa linha, em cumprimento aos princípios norteadores do direito penal, não basta a comprovação da idade para a tipificação do crime de estupro de vulnerável, uma vez que o critério etário não é absoluto. A melhor solução reside na aferição casuística do grau de maturidade sexual e desenvolvimento mental do suposto ofendido, para definir se é ou não vulnerável, aplicando-se a lei de maneira mais justa ao caso concreto. Em última análise, consoante a relativização da vulnerabilidade, expressamente conferida aos deficientes mentais e enfermos – conforme discorreremos a seguir – entendemos que, por interpretação extensiva, deve-se garantir igual tratamento aos menores de 14 anos, reputando-se como vulneráveis apenas aqueles que efetivamente não possuírem o necessário discernimento para a prática sexual.

3.1.2. ENFERMOS E DEFICIENTES MENTAIS

O artigo 224, alínea “b”, do Código Penal, estabelecia a presunção de violência quando a vítima fosse alienada ou débil mental, e o agente conhecesse tal circunstância. Atualmente, a hipótese encontra previsão no § 1º do artigo 217-A, que prevê como vulnerável a pessoa que “por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato”.

Se, por um lado, mostra-se louvável a preocupação da lei em estender especial proteção a tais indivíduos, por outro, é preciso cuidado para que não haja indevida e prejudicial ingerência do Estado na intimidade de pessoas portadores de deficiência, cuja prática sexual é, muitas vezes, de suma importância para seu próprio desenvolvimento pessoal.

Neste aspecto, foi bastante positiva a mudança legislativa. Isto porque, em se tratando de deficientes e enfermos mentais, a vulnerabilidade foi expressamente relativizada, na medida em que o dispositivo contempla apenas aqueles não tiverem o necessário discernimento para a prática do ato. Ou seja, ainda que possuam precária esfera cognitiva e volitiva, tais pessoas podem ostentar capacidade suficiente para compreensão do ato, e aquiescer com sua prática.

Em estudo sobre a sexualidade de deficientes mentais, Débora Gejer afirma que “o deficiente mental, como qualquer outro indivíduo, tem necessidade de expressar seus sentimentos de modo próprio e intransferível. A repressão da sexualidade, nestes indivíduos, pode alterar seu equilíbrio interno, diminuindo as possibilidades de se tornar um ser psiquicamente integral. Por outro lado, quando bem encaminhada, a sexualidade melhora o desenvolvimento afetivo, facilitando a capacidade de se relacionar, melhorando a auto-estima e a adequação à sociedade. (…) A melhora dos cuidados de saúde e o avanço social que as pessoas com deficiência mental vêm alcançando, nas últimas décadas, têm sido muito grande. Atualmente, por meio do processo de inclusão social, os deficientes mentais leves e moderados são capazes de viver integrados na comunidade e, portanto, expostos a riscos, liberdades e responsabilidades. Essas pessoas, durante a adolescência, devem conhecer as transformações físicas e sociais que ocorrem neste período particular de vida” [30].

No mesmo sentido, apontam Olga Maria Bastos e Suely Ferreira Deslandes que “a escassez dos trabalhos sobre a sexualidade das pessoas com deficiência mental, apesar da importância deste debate, nos permite questionar se este fato não se deve ao tema ser ainda revestido de preconceitos pela sociedade. (…) Desta forma, torna-se um desafio modificar a visão sobre os projetos do exercício da sexualidade dos que têm deficiência mental, geralmente abordados pela sociedade a partir de uma visão negativa e pessimista. É preciso valorizar os aspectos positivos e otimistas decorrentes da prática sexual destes adolescentes, em detrimento dos preconceitos relativos ao exercício de sua sexualidade, contribuindo para enriquecer sua existência”[31]. O silêncio e a repressão são formas negativas de lidar com a sexualidade[32].

Parece-nos, pois, que a depender da deficiência mental do indivíduo, é perfeitamente possível seu consentimento válido para a prática do ato sexual, sendo tal aspecto, inclusive, de grande importância para a sua integridade psíquica. Nessa linha, é ilógico considerar um deficiente mental como vítima certa do crime de estupro de vulnerável, eis que equivalente a negar a existência de seu desejo sexual, o que cientificamente não procede. Conclui-se, mais uma vez, ser a vulnerabilidade dos enfermos e deficientes mentais relativa, impondo-se ao julgador a análise do caso concreto.

3.1.3. OUTRAS CAUSAS PELAS QUAIS NÃO SE POSSA OFERECER RESISTÊNCIA

Por fim, o parágrafo 1º do artigo 217-A assinala que é vulnerável quem, “por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”. A hipótese, anteriormente, era prevista na alínea “c” do artigo 224 do Código Penal (“presume-se a violência, se a vítima não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência”).

É preciso cuidado ao interpretar o dispositivo, já que as incertas outras causas podem dar margem a inúmeras situações, algumas de cunho até mesmo insignificante para o Direito Penal. Imagine-se a hipótese de um sujeito que, ao embriagar-se por livre e espontânea vontade, ainda que incompletamente, aceite praticar sexo com terceiro. Posteriormente, poderá ser considerado vítima de estupro contra vulnerável, apenas por ter ingerido voluntariamente algumas doses de álcool. Da mesma forma, incluem-se no âmbito de proteção pessoas viciadas em drogas ou que estejam ingerindo medicamentos em virtude de tratamento médico – antidepressivos, calmantes, dentre outros –, as quais não poderiam manter relações sexuais, visto que amplamente abrangidas pelas elementares deste tipo penal. Em se tratando de crime de ação penal pública incondicionada, chegando ao Ministério Público a informação da prática sexual entre o dependente químico, o embriagado ou o doente em tratamento, com o parceiro de sua escolha, deverá o representante do parquet ajuizar ação penal contra este pela prática de crime de estupro contra vulnerável, dada a desconsideração volitiva do consentimento da suposta vítima.

O mesmo infortúnio repete-se no art. 215, que, em sua nova redação, tipificada a conduta de violação sexual mediante fraude (“Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”). Aliás, considerada a patente semelhança estrutural entre ambos os dispositivos, questiona-se aqui sobre a hipótese de desclassificação da conduta prevista no art. 217-A, para a conduta aqui exposta. Neste sentido acentua Guilherme de Souza Nucci que, embora de rara configuração, é possível imaginar a violação sexual mediante fraude (ardil, engodo, engano). Entretanto, a inclusão da expressão ‘ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima’ não nos parece medida acertada. Afinal, certamente, haverá confusão com o disposto no art. 217 – A, § 1º. Neste, prevê-se ser estupro de vulnerável ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com pessoa que não tenha discernimento suficiente ou que, por qualquer causa, não possa oferecer resistência. Ora, o tipo penal do art. 215 prevê quase o mesmo: ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso mediante meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima[33]

A semelhança entre os dispositivos leva a crer, em primeira análise, que ambos tratam da mesma situação. Entretanto, valendo-se de interpretação sistemática, nota-se que a rubrica “violação sexual mediante fraude” destina-se à prática de ato sexual induzindo a vítima em erro, destoando do “estupro de vulnerável”, que compreende a prática sexual com sujeito vulnerável.

Na primeira situação, o sujeito não é considerado vulnerável. Pelo contrário, é mentalmente são e plenamente capaz de manifestar-se de acordo com seu entendimento e percepção da falsa realidade criada pelo agente, praticando o ato sexual de acordo com sua vontade, sendo seu consentimento existente, porém considerado viciado. Conforme esclarece o mesmo autor, “quando houver resistência relativa ou perturbação relativa, logo, há alguma condição de haver inteligência sobre o ato sexual, embora não se possa considerar um juízo perfeito, poder-se-á cuidar da figura do art. 215. Entretanto, havendo resistência nula ou perturbação total, sem qualquer condição de entender o que se passa, dever-se-á tratar da figura do art. 217-A, §1º”[34].

Frise-se que, na hipótese do artigo 215, a vítima é capaz de consentir, porém seu consentimento é viciado diante da fraude cometida pelo agente, enquanto no art. 217-A, a vítima sequer é capaz de consentir, ou seu consentimento é desconsiderado para fins de direito.

Dessa feita, sejam as causas pelas quais não se possa oferecer resistência, previstas no art. 217-A, sejam os meios que impeçam ou dificultem a livre manifestação de vontade da vítima, descritos no art. 215, entendemos que as estruturas dos artigos são deveras abrangentes, abarcando situações que não deveriam ter sido contempladas pelo legislador, cabendo novamente a análise pelo magistrado da existência de vulnerabilidade, bem como, da fraude pelo agente, para que aplique com maior propriedade os dispositivos legais aos casos concretos.

3.2. ERRO DE TIPO

No contexto dos crimes contra a dignidade sexual, notadamente do estupro de vulnerável, não se pode deixar de considerar a possibilidade de ocorrência do erro de tipo, que afastará o dolo, tornando a conduta atípica.

Neste sentido é a lição de Guilherme de Souza Nucci: o autor do crime precisa ter ciência de que a relação sexual se dá com pessoa em qualquer das situações descritas no art. 217 – A. Se tal não se der ocorre erro de tipo, afastando-se o dolo e não mais sendo possível a punição, visto inexistir a forma culposa.[35] Veja-se que o Supremo Tribunal Federal, mesmo considerando absoluta a presunção de violência, já reconheceu que “não se configura o crime de estupro se a suposta vítima, embora menor de 14 anos, aparenta idade superior, possui comportamento promíscuo e admite não haver sido constrangida a manter relações sexuais com o acusado, tendo-o feito por livre e espontânea vontade”.[36]

Vários julgados anteriores à Lei 12.015/09 também adotavam tal orientação. Por todos: “Considerado o caráter relativo da presunção estabelecida no art. 224, letra a, do Cód. Penal, não cabe critica à sentença que, firme na opinião de juristas do tope de Nelson Hungria (…) e na jurisprudência predominante nas Cortes de Justiça do País, absolve réu acusado de estupro, ante a prova de que, além de consentida a conjunção carnal, a vítima aparentava, pelo porte físico, ser maior de 14 anos. ‘O Código não transige, em caso algum, com a responsabilidade objetiva. Nulla poena sine culpa’ (Nelson Hungria, Comentários ao Código Penal, 5a. ed., vol. VIII, p. 230). ‘Deve o juiz usar a lógica do jurista, que é, precisamente, a lógica do razoável e do humano’ (Goffredo Telles Jr., A Folha Dobrada, 1999, p. 162). ‘Nenhuma presunção, por mais veemente que seja, dará motivo para imposição de pena’ (art. 36 do Código Criminal do Império do Brasil). Toda condenação penal, ainda se trate de acusado de abominável vida pretérita, somente pode ser decretada em face de prova plena e cabal de sua culpabilidade. O princípio geral de que toda a decisão condenatória deve assentar em prova plena e cabal (não só da materialidade do fato criminoso senão também da autoria e culpabilidade do agente) manda afastar da cabeça do réu o gládio da Justiça, nos casos de dúvida invencível (art. 386, ns VII, do Cód. Proc. Penal)”[37].

Ora, se durante a vigência do revogado artigo 224 do Código Penal, boa parte da jurisprudência, trilhando os passos da doutrina, já admitia, ainda que em casos excepcionais, a flexibilização da regra, não há razão plausível para alteração do entendimento, tão só pelo fato de ter sido a então presunção de violência positivada no artigo 217-A.

4. CONCLUSÃO

Com o advento da Lei 12.015/05, tanto o homem quanto a mulher podem ser sujeitos ativo e passivo do crime de estupro. Parece-nos ser a modificação benéfica, pois melhor atende à isonomia, tratando homens e mulheres de forma igualitária. Assim, após a supressão da expressão mulher honesta, pela Lei 11.106/05, o legislador dá mais um importante passo e elimina outro ranço de machismo da legislação pátria.

Outra modificação importante refere-se ao fato de que o art. 213 passou a se caracterizar como crime de ação múltipla ou tipo penal misto alternativo. Logo, a prática de uma ou mais condutas descritas no tipo, no mesmo contexto fático e contra a mesma vítima, caracteriza crime único.

Não obstante a alteração tenha sido recebida com perplexidade, por alguns, o fato é que solução semelhante, afirmando-se o caráter misto alternativo do tipo penal, já é adotada em situações graves, envolvendo tráfico de drogas (Lei 11.343/06) e armas de fogo (Lei 10.826/03), sem qualquer resistência doutrinária. Isso evidencia que o cenário da sexualidade continua sendo um tabu na sociedade.

Ademais, as objetividades jurídicas dos ilícitos, anteriormente tipificados nos artigos 213 (estupro) e 214 (atentado violento ao pudor), são semelhantes, e, muitas vezes, as condutas previstas nesses dispositivos ocorriam contra a mesma vítima, no mesmo contexto fático. Portanto, mostra-se benéfica a junção das referidas condutas em um só dispositivo penal, permitindo o reconhecimento de crime único, cabendo ao magistrado levar em consideração as peculiaridades de cada caso na individualização da pena.

O constrangimento da vítima a conjunção carnal e também a atos libidinosos diversos da conjunção carnal, uma vez previstos no artigo 213, passam a ser crimes de mesma espécie, sendo possível o reconhecimento de crime continuado entre tais infrações. Não se pode utilizar um conceito restritivo de maneira de execução para afastar a continuidade delitiva, pois isto representa uma tentativa oblíqua de modificar o comando que se extrai do texto da nova Lei.

As formas qualificadas estão, agora, previstas nos §§ 1º e 2º do artigo 213, e incidem sempre que da conduta resultar as hipóteses previstas no dispositivo. A mudança, também neste ponto, é benéfica, pondo fim a antigas discussões.

Pela nova Lei, tanto o estupro (art. 213) quanto o estupro de vulnerável (art. 217-A) são crimes hediondos, na forma simples ou qualificada. Eliminou-se, assim, a discussão existente, pelo menos quanto aos crimes praticados sob a égide da nova Lei.

No tocante ao estupro de vulnerável, ao introduzir o artigo 217-A no ordenamento jurídico, o legislador teve o claro intuito de proteger aquelas pessoas que, em razão de pouca idade, deficiência física ou psíquica, ou por outra causa, não podem validamente consentir com a prática do ato sexual ou a ele resistir. No entanto, é preciso ter cuidado com as interpretações que serão dadas ao inédito tipo penal, pois sua redação pode levar à equivocada conclusão de que qualquer relação sexual praticada com as pessoas nele previstas, ainda que consentida, será criminosa, merecedora de tutela penal. Tal interpretação leva a graves e inevitáveis injustiças, sendo necessário, pois, relativizar a presunção de vulnerabilidade, a qual deve ser analisada concretamente.

Conclui-se que, neste aspecto, o legislador deixou de observar várias das reivindicações dos operadores do Direito, mantendo lacunas e margens para novas discussões, o que, em se tratando de crimes contra a dignidade sexual, é acentuado pela repercussão social inerente a tais espécies de delito, polemizando ainda mais a aplicabilidade da lei penal.

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Publicado em:

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[1] Comentários ao Código Penal. p. 117-118.

[2] Foi noticiado recentemente um caso ocorrido na Rússia. Afirma-se que um assaltante invadiu o salão de uma cabeleireira e anunciou o roubo, mas esta conseguiu desarmá-lo e amarrá-lo. Em seguida, a mulher teria forçado o indivíduo a ingerir remédio contra impotência sexual e o obrigado a manter com ela relação sexual por vários dias (Fonte: Periódico eletrônico The Moscow Times. Disponível em:

<http://www.themoscowtimes.com/columns/1292/article/hair-stylist-keeps-armed-robber-as-sex-slave/376242.html>. Acesso em 25.03.2010).

[3] TJMT – AC – Rel. Elon Carvalho – RT 700/355.

[4] TJSP – AC – Rel. Gonçalves Sobrinho – RJTJSP 31/362 e RT 435/106.

[5] Código penal comentado. p. 876

[6] Comentários à reforma criminal de 2009. p. 37.

[7] Ainda quanto à classificação, entendemos que o estupro não é um crime complexo. O tipo envolve uma conduta descrita como crime (constranger mediante violência ou grave ameaça) acompanhada de outros elementos que, por si, não caracterizam crime (conjunção carnal ou outro ato libidinoso). Sobre o tema, vale anotar o magistério de Giulio Battaglini: “Alguns escritores sustentam que ocorre delito complexo também no caso em que em um tipo penal é descrito um fato que por si só constitui um delito (conforme outra disposição legal), a que se acresce um quid pluris que por si não é infração penal. Foi formulado, entre outros, o exemplo de violência carnal (art. 519, Cód. Penal italiano), caso em que ao constrangimento ilegal se acresce o quid pluris, que não é infração penal, consistente na conjunção carnal. (…) Para nós, porém, é evidente que o art. 84 do Código Penal italiano não admite de maneira alguma essa interpretação, que não passaria de um modo inteiramente arbitrário de ampliar os limites do delito complexo. O art. 84 exige dois ou mais fatos, cada um dos quais seja delito tipificado em dispositivo legal diverso; há de ser dois ou mais fato que devem ser especificamente indicados. (…) Não se deve pensar que qualquer figura de delito de natureza complexa, dê lugar à figura específica de delito complexo” (Direito penal: parte geral; p. 567-568).

Embora o presente trabalho tenha por objeto as questões atinentes à modificação trazida pela Lei 12.015/09, convém tecer alguns comentários sobre o elemento subjetivo do tipo. Para boa parte da doutrina, o crime de estupro exige a presença de elemento subjetivo do tipo específico, consistente na vontade de satisfação da lascívia.  Em que pesem os argumentos neste sentido, não concordarmos com esta posição. É bem verdade que, como regra, o estupro terá esta finalidade, mas nem sempre isto ocorrerá. Ora, um indivíduo pode decidir estuprar alguém por diversos outros motivos, como vingança, por puro sadismo, ou até visando extrair uma confissão, e, em nenhum desses casos, haverá intenção de satisfação da lascívia. A posição majoritária, que exige o dolo específico para tipificação do estupro, leva a um resultado incoerente e desproporcional: se o indivíduo “A” pratica contra a vítima atos libidinosos para satisfazer a lascívia, responderá por estupro; se o indivíduo “B” pratica os mesmo atos visando obter uma confissão, praticará tortura. Parece-nos, aliás, que dificilmente tal solução seria contemplada na prática. Neste diapasão é o entendimento de Francisco Muñoz Conde, ao afirmar que o dolo, entendido com realização voluntária de uma ação violenta ou intimidadora com conhecimento de seu significado sexual, não requer nenhum outro elemento subjetivo específico (ânimo lascivo). Basta que o sujeito ativo queira agredir sexualmente (Derecho penal. Parte especial. p. 185). Outro não é o entendimento de Miguel Polaino Navarrete, para quem, precisamente por não se exigir legalmente que exista no sujeito da ação um ânimo ou intenção determinada, o requisito doutrinário de um elemento subjetivo específico pode ter certa base criminológica, mas desde logo carece de fundamento legal, operando  unicamente como mecanismo de presunções infundadas (Dolo genérico versus dolo específico : reflexiones críticas sobre la relación entre el dolo y los elementos subjetivos del injusto. Revista de Derecho Penal, Montevidéo, n. 13, p. 211-241, dez. 2002). Portanto, entendemos que o crime não exige o elemento subjetivo do tipo específico, mas sim genérico. Para sua caracterização, exige-se tão somente a vontade de realizar os elementos da conduta típica, sem qualquer fim especial.

[8] STF – HC 96.942/RS – Pleno – Rel. Min. Ellen Gracie – j. 18.06.2009.

[9] TJSP – AC – Rel Des. Luiz Betanho – RT 691/303.

[10] Crimes contra a dignidade sexual : comentários à Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009. p. 18-19.

[11] Uma interpretação de duvidosa dignidade. Site da Escola Paulista da Magistratura.  Disponível em <http://www.epm.sp.gov.br/Internas/ArtigosView.aspx?ID=2859>. Acesso em 07.01.2009. Também adotam esta posição Alessandra Orcesi Pedro Greco e João Daniel Rassi (Crimes contra a Dignidade Sexual. p. 146).

[12] Fonte: Folha de São Paulo. Estupradores usam nova lei para reduzir tempo na prisão. São Paulo. 15/06/10. Cotidiano, p. 1-2.

[13] STJ – HC 104724/MS – Rel. Min. Jorge Mussi – 5ª T – j. 22/06/2010; STJ – HC 78667/SP – 5ª T. – Rel. Min. Laurita Vaz  – j. 22/06/2010.

[15] Com efeito, em decisão recentemente proferida pela 6ª. Turma do STJ, o Min. Og Fernandes assinalou que as condutas de estupro e do já revogado atentado violento ao pudor, quando realizadas contra a mesma vítima e no mesmo contexto fático, caracterizam crime único e não mais concurso material de infrações ou até mesmo crime continuado (STJ – HC 144870/DF – 6ª T. – Rel. Min. Og Fernandes – j. 09.02.10). Também neste sentido: TJSP – Ap. 990091932329 – 11ª Câmara de Direito Criminal – Rel. Des. Aben Athar – j. 03.02.10; TJMG – Ap. 1.0079.04.161999-4/001 – Rel. Des. Maria Celeste Porto – j. 15.12.09; TJCE – 2ª Câmara – AP 2006.0007.5162-6 – Rel. Maria Sirene Souza Sobreira. j. 28.09.09; TJSC – Ap. n. 2009.038539-0 – 3ª. Câmara Criminal – Rel. Des. Moacyr de Moraes Lima Filho – j. 24.09.09; TJMS –  ACr n 2009.026764-5 – 2ª T. Criminal – Rel. Des. Romero Osme Dias Lopes – j. 08/02/2010; TJGO – ACr n. 200902910412 – Rel. Des. Leandro Crispim – DJGO 06/04/2010 – p. 205.

[16] Tratado de direito penal : parte geral, volume 1. 10. ed. São Paulo : Saraiva, 2006. p. 724.

[17] Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, volume 4: parte especial. 3° edição. São Paulo: Saraiva, 2008. pág. 3.

[18] Neste sentido, decidiu recentemente o Supremo Tribunal Federal que “se o impedimento para reconhecer a continuidade delitiva entre o estupro e o atentado violento ao pudor residia tão-somente no fato de não serem crimes da mesma espécie, entendidos, pela ilustrada maioria, como fatos descritos pelo mesmo tipo penal, tal óbice foi removido pela edição da nova lei (HC 86.110/SP – 2ª. T. –  Rel. Min. Cezar Peluso – j. 02.03.10) .

[19] O estupro como crime único e a dignidade da pessoa humana. Carta Forense, São Paulo, v.1, 02.010.09.

[20] O artigo 164 do Código Penal português assim estabelece: “Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos”. Já o Código espanhol, no artigo 179, reza que “Cuando la agresión sexual consista en acceso carnal por vía vaginal, anal o bucal, o introducción de miembros corporales u objetos por alguna de las dos primeras vías, el responsable será castigado como reo de violación con la pena de prisión de seis a 12 años”. O Código Penal da Venezuela, por seu turno, prevê no artigo 374: “Quien por medio de violencias o amenazas haya constreñido a alguna persona, de uno o de otro sexo, a un acto carnal por vía vaginal, anal u oral, o introducción de objetos por alguna de las dos primeras vías, o por vía oral se le introduzca un objeto que simulen objetos sexuales, el responsable será castigado, como imputado de violación, con la pena de prisión de diez años a quince años. Si el delito de violación aquí previsto se ha cometido contra una niña, niño o adolescente, la pena será de quince años a veinte años de prisión”.

[21] Individualização da pena. p. 310.

[22] Lei n. 12.015/2009 – Dos crimes contra a dignidade Sexual – adendo. Disponível em <http://www.scribd.com/doc/19590114/ADENDO12015emenda>

[23] Direito Penal. v. 2. p. 100.

[24] Código Penal Comentado. p. 602/603.

[25] TJSP – Apelação Criminal 253.210-3 – 6ª Câmara Criminal – Rel. Des. Debatin Cardoso – j. 22.10.98. v.u. No mesmo sentido:  “ESTUPRO – Violência presumida – Menor de 14 anos – Não caracterização – Dispositivo legal destinado a circunstâncias diversas – Caráter relativo da referida presunção – Jovem com evidente experiência sexual – Não enquadramento na proteção da lei – Absolvição determinada – Recurso provido”. (TJSP – Apelação Criminal 227.616-3 – 2ª Câmara Criminal – Rel. Des. Canguçu de Almeida – j. 03.11.97 – v.u.).

[26] STJ – REsp 637361 – 6ª T – Rel. Min. Og Fernandes – j. 01/06/2010 – DJ. 28/06/2010.

[27] “É firme a a jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido de que o eventual consentimento da ofendida, menor de 14 anos, para a conjunção carnal e mesmo sua experiência anterior não elidem a presunção de violência, para a caracterização do estupro” (STF – HC 93263/RS – 1ª T. – Rel. Min. Carmen Lúcia – j. 19/02/2008 – DJ. 11/04/2008).

[28] STJ – HC 88664/GO – 6ª T. – Rel. Min. Og Fernandes – j. 23/06/2009 – DJ 08/09/2009.

[29] Problematizações sobre o estupro de vulnerável em face do princípio da proteção integral. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 17, n. 209, p. 08-09, abr., 2010.

[30] Adolescente com deficiência mental e sua sexualidade. Fonte: Instituto Indianápolis. Disponível em <http://www.indianopolis.com.br/si/site/1103>. Acesso em 14/11/09.

[31] Sexualidade e o adolescente com deficiência mental : uma revisão bibliográfica. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, p. 389-398, 2005

[32] MOREIRA, Lília MA; GUSMÃO, Fábio AF. Aspectos genéticos e sociais da sexualidade em pessoas com Síndrome de Down. Revista Brasileira de Psiquiatria (São Paulo), Brasil, v. 24, n. 2, p. 94-99, 2002.

[33] Crimes contra a dignidade sexual – Comentário à Lei 1215, de 7 de agosto de 2009. p.28.

[34] op. cit. p.29.

[35] op. cit. p.38.

[36] STF – HC 73.662/MG – 2ª T. – Rel. Min. Marco Aurélio – j. 21/05/1996 – DJU 20/09/1996. Também nesta linha: “a jurisprudência do Tribunal reconhece a atipicidade do fato delituoso quando se demonstra que a ofendida aparenta ter idade superior a 14 anos” (STF – HC 79.788/MG – 2ª T. – Rel. Min. Nelson Jobim – j. 02/05/2000 – DJ 17.08.2001).

[37] TJSP – Apelação n° 993.02.015671-2 – 5ª Câmara de Direito Criminal – Rel. Des. Carlos Biasotti – j. 15/05/2009.