Impacto da Tecnologia no Direito Penal e Processo Penal
A tecnologia destina-se a atender às necessidades do ser humano, facilitando a vida e proporcionando conforto, dividindo-se em diversas áreas, tais como tecnologia da informação, tecnologia industrial, tecnologia médica, tecnologia da comunicação, dentre outras. No campo do direito, concentram-se os interesses na informação e na comunicação. Particularmente, encontra-se, no setor da informação, a inteligência artificial, com a função de imitar as funções cognitivas humanas.
As atividades diárias são envolvidas pela tecnologia, com inúmeras vantagens, tais como o acesso facilitado e rápido a informações e conhecimento, a comunicação simplificada e dinâmica entre as pessoas (e-mails, mensagens, redes sociais, videoconferências etc.), viabilização do trabalho remoto (home office) e do ensino à distância, a automação de diversos serviços, o armazenamento de dados significativos em nuvem, o favorecimento a pesquisas rápidas em arquivos volumosos, o aumento do acesso ao entretenimento digital (filmes, músicas, shows, jogos etc.), a possibilidade de comércio digital, a utilização de telemedicina, robôs em cirurgias, aparelhos avançados para exames, dentre outros. Todavia, há pontos demonstrativos das desvantagens do cenário tecnológico, com ênfase à área da informação e do conhecimento, geradores de alguns problemas a solucionar com o tempo. Depara-se com situações de hiperconectividade, quando o fluxo contínuo de informações afeta as atividades costumeiras e profissionais das pessoas, podendo gerar o burnout (estresse ou esgotamento profissional), a dependência digital, causando o transtorno de dependência da Internet (ciberviciado), a nomofobia, que é o transtorno referente ao medo ou ansiedade de ficar sem o uso do celular e o uso abusivo de telas de computador, jogos eletrônicos, celular, dentre outras. Associe-se a esse quadro a disseminação de fake News e o abuso no emprego de inteligência artificial, apto a gerar, com o passar do tempo, a diminuição da capacidade humana de raciocínio, resolução de problemas e produção de decisões.
Desfrutando das vantagens e buscando contornar as desvantagens, a tecnologia está presente no direito penal e no processo penal. Há vantagens evidentes no campo da produção de provas, como, por exemplo, a formação da materialidade (prova da existência do crime) pode dar-se por meio de avançadas técnicas (exame de DNA, reconstituição virtual do crime, hematologia forense etc.), a informatização do processo (geração de rapidez no trâmite, facilidade de acesso das partes, publicidade mais abrangente, diminuição de arquivos gigantescos para processos físicos), a existência do reconhecimento facial (favorecimento da identificação de criminosos foragidos), o monitoramento cada vez mais extenso de lugares públicos por sofisticadas câmeras (registro de práticas de crimes, com posterior uso em juízo), os programas de cálculo de penas com softwares específicos (facilitador de cálculos, evitando-se erros materiais), a admissibilidade de recursos por inteligência artificial (aceleração do processamento de recursos especial e extraordinário), as medidas assecuratórias efetivadas online, assim como mandados de prisão inseridos em banco de dados nacional, propiciando a detenção de procurados em qualquer lugar do território, o registro de depoimentos em mídia audiovisual (favorecimento de análise do conteúdo e da firmeza ou insegurança das testemunhas, das vítimas e réus pelos julgadores nos tribunais) e a viabilização de teleaudiências e julgamentos telepresenciais nos tribunais (facilitar a participação das partes à distância).
As desvantagens podem gerar alguns problemas, como a pericialização das provas em prejuízo das demais e da avaliação judicial (predomínio cada vez maior do parecer pericial, podendo superar outras relevantes provas e até mesmo o critério judicial de análise do conjunto probatório), os recursos atinentes ao reconhecimento facial e à monitoração por câmeras constituem instrumentos de invasão de privacidade e de intimidade (pessoas inocentes podem ser acompanhadas em seus afazeres cotidianos), os programas para o cálculo de penas podem levar os julgadores a desacostumar do procedimento (conforme a amplitude, é possível desencadear a padronização da aplicação da pena, desvinculada da análise individualizada dos casos), a inteligência artificial comete erros e fornece dados falsos, pois está em constante aprendizado (há registros de erros judiciários ou das partes ao formatar peças nos processos, com confiança excessiva na I. A.), a rejeição de recursos pode basear-se em equívoco da inteligência artificial (exige da parte interessada pronta atuação para reclamar, por meio de recurso apropriado), a geração de culpa prematura e indevida, além do denominado cancelamento digital (o prejulgamento de pessoas suspeitas da prática de crimes têm levado a imediata condenação pela opinião pública das redes sociais, com consequências imediatas e concretas para os presumidos autores), no âmbito do Tribunal do Júri, a disseminação de informações do crime e do suspeito podem atingir os potenciais jurados (não há nem mesmo fundamento para o desaforamento, pois inexiste prova do alcance das notícias do delito), a desigualdade digital, gerando o engajamento cada vez maior de alguns e o distanciamento de muitos outros, visto que camadas menos favorecidas economicamente têm precário acesso à Internet e à inteligência artificial (reflexos no desequilíbrio das partes no processo, com deficiência na defesa de réus hipossuficientes), a complexidade tecnológica (o domínio dos operadores do direito não é fácil, desacostumados ao ambiente digital e ainda habituados às ferramentas tradicionais), a falsificação de provas (programas avançados e inteligência artificial são capazes de montar fotos, vídeos e áudios inverídicos, com efeitos no processo), a paralisação de sistemas informatizados por invasão de hackers (influência no trâmite processual, com lentidão ou suspensão de trabalhos forenses), a captação de dados sigilosos armazenados nos sistemas dos tribunais (invasões podem violar segredos das partes).
O cenário do direito penal, quanto à tipificação dos crimes cibernéticos ou digitais (equiparados os termos para se tratar de tecnologia), não se encontra paralisado, ao contrário, nos últimos anos, o Legislativo tem promovido a criação de tipos específicos, seja no campo dos próprios (crimes cibernéticos ou digitais somente cometidos por dispositivo informático) como nos impróprios (podem ser cometidos por dispositivo informático, mas também por outros meios).
O avanço da legislação penal é uma realidade, embora ocorra depois que casos concretos aconteçam, gerem repercussão na sociedade e movimentem o Poder Legislativo. No âmbito dos crimes contra a vida, em 2019, o art. 122 do Código Penal foi alterado para incluir, junto ao induzimento, instigação e auxílio ao suicídio, as mesmas condutas para a automutilação. Um dos principais eventos para gerar a modificação do tipo penal originou-se do jogo denominado “baleia azul”, com origem na Rússia, espalhando-se pelo mundo. Consistia em promover, pela Internet, desafios com cerca de 50 níveis de dificuldade, atingindo o fecho, que é o suicídio. Vários adolescentes integraram esse jogo, além de adultos. As tarefas baseavam-se em desafios mais simples, no início, como assistir filmes de terror, durante a madrugada, subir em telhados de edifícios, fazer desenhos na própria pele com instrumentos cortantes até chegar à automutilação e, por consequência, ao suicídio. Foram registradas mortes de adolescentes em cidades brasileiras e outros casos de lesões leves e graves. Depois disso, por meio do Tik Tok, surgiu o desafio do apagão, induzindo e instigando os jogadores a apertar o pescoço até perder a consciência. Há registro de um jovem de 12 anos, que passou pelo desafio e terminou com morte cerebral. Outros jogos similares existem, lançados na rede mundial de computadores. Por isso, a alteração do tipo penal do art. 122 do Código Penal, levando em consideração os meios tecnológicos – digitais – pelos quais os agentes criminosos atingem suas vítimas. Não é fácil a produção da prova e a descoberta do autor, porque muitos agentes desse delito atuam na obscuridade, inclusive agindo em países estrangeiros. A infração penal é eminentemente praticada pela rede mundial de computadores, razão pela qual alguns aumentos podem ser aplicados em quase todos os casos. O § 4º indica, como causa de aumento (dobro da pena), a realização do crime por meio da rede de computadores, de rede social ou transmitida em tempo real. O § 5º aponta igual aumento se o agente for o líder, coordenador ou administrador de grupo, de comunidade ou de rede virtual, ou por estes é responsável.
No contexto dos delitos contra a vida, quanto ao homicídio, há registro de hackers invadindo e sequestrando sistemas informatizados de hospitais, podendo levar à morte algum paciente, internado em U. T. I., cujos aparelhos são conectados à rede, além de seus prontuários serem digitalmente produzidos. Afora esse quadro, a tecnologia trouxe os drones, que têm sido utilizados largamente em guerras, levando consigo armas letais para o combate ao inimigo; nada impede que alguém possa usar um drone para matar alguém, fora do cenário de uma guerra. Enfim, o avanço tecnológico caminha a passos largos e o que não se imaginava ser possível antes, pode tornar-se uma realidade no presente e no futuro.
Estende-se amplamente, pela rede mundial de computadores e pelos aplicativos de mensagens, a prática de crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria), levando-se em consideração a facilidade de se postar qualquer comentário ofensivo à reputação de outrem e, com isso, alcançar um número inestimável de pessoas. O delito contra a honra ganha relevo peculiar, quando praticado pela Internet, tanto que o legislador inseriu, em 2019, causa específica de aumento de pena (CP, art. 141, § 2º. Se o crime é cometido ou divulgado em quaisquer modalidades das redes sociais da rede mundial de computadores, aplica-se em triplo a pena). Além dos debates acerca do momento consumativo e do foro competente para processar o ofensor, uma particular questão ergue-se à discussão, concernente à coautoria e participação. Postado um comentário, divulgando calúnia, difamação ou injúria, as pessoas que aderem com “likes” ou, mais abertamente, comentam no mesmo sentido, tornam-se autores destacados de igual crime contra a honra? Ou seriam considerados coautores ou partícipes? Essa ofensa, postada na Internet, onde permanece visualizada por inúmeras pessoas constantemente, continuaria a ser classificada como crime instantâneo ou migraria para a forma permanente? Poderia ser um crime no formato instantâneo de efeitos permanentes? Como avaliar o elemento subjetivo específico (animus injuriandi vel diffamandi)? Em suma, são questões merecedoras de minuciosa análise, que, no momento, tem a finalidade apenas de provocar a reflexão para se elaborar o contraste da atuação da tecnologia no direito penal.
A liberdade individual pode ser afetada por crimes cometidos pela Internet, dentre os quais se encontram a intimidação sistemática (cyberbullying), a ameaça, a perseguição (stalking) e violência psicológica contra a mulher. O primeiro mencionado diz respeito ao bullying – intimidação sistemática, usando violência física ou psicológica, de modo repetido, por meio de vários atos constrangedores, envolvendo ameaça, humilhação ou discriminação e foi inserido em 2024. A figura do caput se concretiza quando efetivada pessoalmente. No parágrafo único do art. 146-A do Código Penal encontra-se a intimidação sistemática virtual. Independentemente da crítica às penas desproporcionais cominadas (no caput – intimidação presencial – prevê-se apenas uma multa; no parágrafo único – intimidação virtual –, reclusão de 2 a 4 anos, e multa), é fato que o direito penal levou em conta a gravidade do cyberbullying, tipificando-o com sanção rigorosa. O crime de ameaça (art. 147, CP) não possui uma forma específica para ser cometido, de maneira que o uso da rede mundial de computadores ingressa nesse cenário. A facilidade de acesso rápido à vítima almejada tornou usual essa prática, com particular enfoque à violência contra a mulher, como temos acompanhado nos processos em grau de recurso no Tribunal de Justiça. Aliás, até mesmo mensagens ameaçadoras enviadas por PIX (por vezes, acompanhadas da remessa de meros R$ 0,50 à pessoa visada) são instrumentos utilizados, que se valem da tecnologia. O crime de perseguição foi incluído na legislação penal em 2021, embora praticado antes disso e, à época, somente passível de indenização na esfera civil. Por certo, grande parte das perseguições são feitas direta e presencialmente, o que não impede, ao contrário, permite a sua prática pela Internet, redes sociais e outros mecanismos digitais. Há alguns instrumentos de defesa das pessoas perseguidas, conforme o ambiente virtual, por meio do bloqueio do perseguidor, ainda que o stalker encontre inúmeros subterfúgios para contornar essas medidas e o tormento sequencial prossiga. A infração penal referente à violência psicológica contra a mulher, incluído no art. 147-B do Código Penal, em 2021, tem um tipo penal abrangente, buscando punir quem causa dano emocional à mulher, prejudicando e perturbando o seu desenvolvimento pleno ou procurando humilhar ou controlar seu comportamento. Envolve manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação à liberdade de locomoção, podendo gerar prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação da vítima. A rede mundial de computadores é pródiga em instrumentos por meio dos quais pode o agressor acessar a mulher, constrangendo-a, fiscalizando-a e controlando suas condutas.
O crime cibernético próprio, que lida com a inviolabilidade dos segredos, é a invasão de dispositivo informático (art. 154-A, CP), conectado ou não à Internet, com a finalidade de obter, adulterar ou destruir dados ou informações, sem autorização clara ou tácita do usuário, bem como instalar vulnerabilidades para alcançar vantagem ilícita, com pena de reclusão, de 1 a 4 anos, e multa. Ingressa nesse campo a introdução de vírus ou malware em dispositivo informático, tanto com o objetivo de causar danos como para conseguir uma vantagem indevida. Inclui-se no crime quem produz, oferece, distribui, vende ou difunde um dispositivo ou programa de computador visando à prática da invasão. A forma qualificada diz respeito, especificamente, ao bem jurídico tutelado e indicado no título da Seção IV (inviolabilidade dos segredos), de modo que, se a invasão provocar a efetiva obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas privadas e sigilosas, gera a pena de reclusão, de 2 a 5 anos, e multa.
No âmbito dos crimes contra o patrimônio, diversas ocorrências fáticas demonstraram a necessidade da criação de tipos incriminadores específicos para lidar com a tecnologia: furto e estelionato com emprego de dispositivos eletrônicos ou informáticos. O furto qualificado (art. 155, § 4º-B) indica que a subtração de coisa móvel alheia se faz mediante fraude, valendo-se o agente de dispositivo eletrônico ou informático, com acesso ou não à Internet, havendo ou não a violação de qualquer mecanismo de segurança ou o emprego de programa malicioso (malware), ampliando-se, por interpretação analógica, a qualquer outro mecanismo fraudulento. A pena é severa: reclusão, de 4 a 8 anos, e multa. Se na invasão a dispositivo informático do art. 154-A busca o agente alcançar dados sigilosos ou danificar o seu conteúdo, no caso do furto, por uso de dispositivo informático, a invasão proporciona a subtração de valores da vítima. Por isso, o primeiro se dirige à violação da vida privada e da inviolabilidade de segredos e o segundo se volta ao patrimônio. Noutro campo, o estelionato foi titulado como fraude eletrônica (art. 171, § 2º-A, CP), porque o meio para gerar o erro e o engano, que proporcione ao agente a vantagem indevida, se dá com o uso de informações fornecidas pela própria vítima ou terceira pessoa, induzida por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico falso – abrindo-se a porta, ainda, para qualquer outro meio fraudulento análogo. Aliás, mais grave a pena – corretamente previsto em lei –, tanto para o furto, quanto para o estelionato, quando o servidor da Internet se encontra fora do território nacional, o que prejudica a investigação e a apuração do delito, bem como na situação de ter por vítima uma pessoa idosa ou vulnerável. Em qualquer situação, está-se diante do entrelaçamento do direito penal com a tecnologia.
Pode-se apontar a tipificação do estelionato previsto no art. 171-A do Código Penal, envolvendo ativos virtuais, como as criptomoedas, com sanção severa, de reclusão, de 4 a 8 anos, e multa, como um avanço peculiar. Afinal, cuida-se de um tipo incriminador necessário, mas que surgiu antes mesmo da operação com ativos virtuais se tornar comum e abrangente no Brasil, demonstrando que o direito penal, por vezes, acompanha mais de perto a evolução tecnológica.
Não se deixa o cenário do delito patrimonial sem mencionar os mais graves, pois envolvem violência ou ameaça, tal como a extorsão, tendo por base a inicial figura do art. 158, § 3º, introduzida em 2009, com a severa sanção de reclusão, de 6 a 12 anos, e multa – aumentando-se consideravelmente quando houver lesão grave ou morte da vítima. É o denominado sequestro relâmpago, um formato de extorsão surgido exatamente na época em que a tecnologia permitiu o surgimento dos bancos 24 horas na década de 1980. Há quem se recorde desse evento, possibilitando que, com o uso do cartão de débito ou crédito, o correntista sacasse dinheiro a qualquer hora do dia ou da noite. Os avanços tecnológicos não passam despercebidos de criminosos, que progridem igualmente na modelagem dos seus delitos. Muitas vítimas eram sequestradas, geralmente à noite, para acompanhar os agentes, com o emprego de grave ameaça, para passar pelos caixas eletrônicos e, valendo-se do cartão, sacassem os valores almejados pelos extorsionários. Essa prática alastrou-se pelo Brasil e, por isso, embora atrasado, o Legislativo editou a Lei 11.923/2009 para essa figura típica. Infelizmente, mesmo com o declínio do uso desses bancos 24 horas, o sequestro relâmpago continua presente nos julgamentos criminais. Tal situação decorre do surgimento de um substituto à altura, tecnologicamente mais adiantado, que é o conjunto de aplicativos bancários, inseridos nos smartphones, com amplo acesso à conta bancária dos usuários – desvendando-se seus investimentos e poupança – gerando a facilidade de atuação dos extorsionários. Privando a liberdade da vítima, obriga-se a transferência de valores para as contas indicadas pelos agentes, com o emprego de grave ameaça. Acrescente-se ao ambiente tecnológico o PIX, uma criação do Banco Central do Brasil, implantada em 2020, facilitando as transações e transferências de valores entre as pessoas, porque se pode fazer mediante alguns toques no próprio celular. Essa forma de pagamento instantâneo favoreceu imensamente o comércio e os negócios em geral, bem como os particulares em suas transações, caindo no gosto do brasileiro e superando o uso do papel-moeda – que, ademais, já se encontrava em desuso. Não é a última parada, pois ventila-se a criação da moeda digital – o denominado DREX, que pode sepultar a moeda física. Enfim, avanços tecnológicos que não escaparam ao progresso criminoso e, atualmente, não há juiz criminal que já não tenha tomado contato com o sequestro relâmpago – e outras formas de extorsão – obrigando-se a vítima a transferir, por PIX, valores para os destinatários indicados pelos agentes.
Não se olvide, ainda, a extorsão sexual, inserida no contexto da invasão de privacidade, em que o agente, conseguindo, de algum modo, foto ou vídeo da vítima, em sua intimidade sexual – mesclando-se com o crime do art. 216-B (registro não autorizado da intimidade sexual) em muitos casos – alcança indevida vantagem econômica, sob a ameaça de divulgação desse conteúdo na Internet ou distribuição para outras pessoas. Finalmente, ainda no campo da extorsão, encontra-se o sequestro de dados, por meio do qual o agente infecta um sistema de dados de empresa, instalando um vírus ou malware, bem como qualquer mecanismo apto a criptografar esse conteúdo, tornando-o inacessível até que lhe seja pago um resgate, vale dizer, uma vantagem econômica indevida. Não se esgota, por certo, o amplo avanço compassado e ritmado da tecnologia e do crime, viabilizando a atuação do direito penal.
Um dos mais sensíveis cenários das infrações penais em que a tecnologia avançada desponta, grande parte concentrada na navegação pela Internet e no uso de redes sociais e aplicativos de mensagens, está concentrada nos crimes contra a dignidade sexual. E, com maior gravidade, contra vulneráveis menores de 18 anos, pois o bem jurídico é complexo, envolvendo não somente a dignidade sexual, mas a formação moral de crianças e adolescentes.
O registro não autorizado da intimidade sexual (art. 216-B, CP), incluído em 2018, associado à Internet e às redes sociais e aplicativos de mensagens, adveio da tutela que se pretende dar à privacidade associada à dignidade sexual, mormente quando se percebeu a lamentável divulgação de fotos ou vídeos de nudez ou de atos sexuais, como decorrência da denominada pornografia de vingança. Ilustra-se com o parceiro que, inconformado com o término de um relacionamento amoroso, vinga-se da ex-namorada, noiva, cônjuge ou companheira introduzindo na rede mundial de computadores os registros que fez na intimidade do casal. Pode, ainda, enviar a foto ou vídeo, por aplicativo de mensagem, a vários parentes, amigos ou simples conhecidos.
O progresso tecnológico possibilitou a ocorrência do estupro virtual, que pode dar-se tanto na forma do art. 213, quando do art. 217-A, do Código Penal. Nada impede que, em tempo real, por meio de comunicação digital (telechamada, por exemplo), o agente, mediante grave ameaça, constranja a pessoa com a qual está conectado a se despir e a se tocar, a fim de gerar ato libidinoso (como a masturbação), satisfazendo seu prazer sexual. Essa situação se torna particularmente grave – e tivemos a oportunidade de julgar caso com esse perfil – quando envolve criança ou adolescente, configurando o estupro virtual de vulnerável. O aliciamento infantil se dá por variadas formas, dentre as quais salas de bate-papo e jogos online, por meio dos quais o agente inicia seus atos passando-se por criança ou jovem, ganhando a confiança da vítima e estreitando contato. A partir daí, quando o infante possui uma forma de se isolar em algum lugar, com um smartphone ou computador online, conecta-se com o estuprador e este faz a pessoa menor de 14 anos se despir, tocar-se e expor-se de variadas maneiras, enquanto o autor pratica seu ato libidinoso, masturbando-se. Para a configuração de qualquer forma de estupro prescinde-se de contato físico entre autor e vítima, pois o tipo penal (arts. 213 e 217-A, CP) não o exige. Atos libidinosos são variados e não implicam necessariamente conjunção carnal ou penetração. Portanto, exemplificando, quem, presencialmente, obriga outrem, mediante grave ameaça, a ficar nu, obtendo com isso prazer sexual, está cometendo estupro. Pode-se fazer o mesmo de forma virtual, em tempo real.
No Estatuto da Criança e do Adolescente, há um variado rol de tipos penais incriminadores (arts. 241, 241-A, 241-B, 241-C, 241-D), inseridos em 2008, buscando alcançar a punição de pedófilos, pessoas com transtorno de personalidade parafílico, voltados a ter prazer sexual, dentre outras manifestações, com crianças. Abrange-se, também, a tutela de adolescentes, no tocante à salvaguarda de sua imagem, registrada em qualquer meio (foto, vídeo ou base similar). Esses tipos penais buscam punir quem lida com armazenamento, distribuição de qualquer maneira e produção de imagens de crianças e jovens em cenas de sexo explícito ou pornográficas. Com o avanço tecnológico, algo ampliado pela inteligência artificial, tipificou-se a simulação da participação de criança ou adolescente nessas cenas por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografias, vídeos ou outro formato visual. O direito penal não está inerte em face da tecnologia; pode demorar, mas termina por se fazer presente, criando tipos incriminadores, dentro do princípio da legalidade, para enfrentar as novas ocorrências surgidas nos mais variados cenários. Não é demais lembrar que a chamada pedofilia virtual é cliente assídua do comércio constante realizado na deep web, oculto e dissimulado, difícil de ser localizado, embora envolva atividade investigatória constante das autoridades policiais. Para facilitar a busca de predadores sexuais de infantes, criou-se em 2019 a viabilidade da infiltração virtual de agentes policiais (art. 10-A, Lei 12.850/2013), procurando, na Internet (geralmente, na deep web) as organizações criminosas voltadas a crimes sexuais contra crianças e adolescentes. Nesse triste cenário de aliciamento e abuso infantojuvenil, não basta a presença do direito penal, pois o ideal é a prevenção, evitando-se atingir apenas a eventual punição do criminoso. Eis que surge a conscientização dos pais e responsáveis para não entregar, livre de qualquer controle efetivo, celulares e outros dispositivos informáticos, com acesso à Internet e outros aplicativos de comunicação, a crianças. Aos adolescentes, igualmente, a fiscalização também se exige. Observa-se, em casos retratados nos processos criminais, portanto, longe de serem meras hipóteses, que inúmeras vítimas foram deixadas à mercê da ação dos aliciadores, motivo pelo qual o eficaz sistema preventivo deve alcançar os pais e todos os responsáveis pelos menores de 18 anos. O direito penal, nesse campo, instrumentaliza, quando possível, somente a punição do autor do crime, mas não apaga, nem faz desaparecer o trauma gerado à vítima. A prevenção é o melhor caminho.
Diversos outros tipos penais poderiam ser mencionados para indicar a interligação do direito penal e da tecnologia, mas não se pretende esgotar o assunto, vasto pela própria natureza, na exata medida em que o universo eletrônico parece cada vez mais ilimitado e, a cada dia, emergem novas técnicas e recursos. A rede mundial de computadores trouxe a todos os países uma autêntica revolução nos campos da informação e da comunicação, com aspectos nitidamente positivos, acompanhado pelos prismas negativos. Em paralelo, caminha o processo penal tecnológico, informatizando processos, digitalizando provas e promovendo atos processuais à distância, o que produz benefícios e malefícios, como expusemos linhas atrás.
O avanço tecnológico é irrefreável e traz proveitos e vantagens inegáveis ao progresso da humanidade, razão pela qual se deve lidar com esse desenvolvimento acelerado de modo receptivo, mas cauteloso. Afinal, quanto mais previdentes formos na absorção dessas novidades tecnológicos e no seu emprego utilitário e responsável, menor poderá ser a ingerência do direito penal nas relações humanas. Assim ocorrendo, o benefício é inegavelmente de todos.
Artigo reduzido publicado originalmente no Conjur: Veja aqui.Continue a ler »Impacto da Tecnologia no Direito Penal e Processo Penal