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Inconstitucionalidade da contravenção de porte de arma

 

Dispõe o art. 19 da Lei das Contravenções Penais, editada em 3 de outubro de 1941, o seguinte: “trazer consigo arma fora de casa ou de dependência desta, sem licença da autoridade: Pena – prisão simples de 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses, ou multa, ou ambas cumulativamente. (…) § 2.º Incorre na pena de prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses, ou multa, quem, possuindo arma ou munição: a) deixa de fazer comunicação ou entrega à autoridade, quando a lei o determina; b) permite que alienado, menor de 18 (dezoito) anos, ou pessoa inexperiente no manejo de arma a tenha consigo; c) omite as cautelas necessárias para impedir que dela se apodere facilmente alienado, menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa inexperiente em manejá-la”.

Inquestionavelmente, o seu foco era constituído das armas de fogo, vez que era o único tipo incriminador existente para o seu controle e, quando necessário, punição. Note-se a preocupação legislativa de trazer consigo arma fora de casa, com o importante complemento: sem licença da autoridade. Em primeiro lugar, somente se dava – e hoje se dá – licença para arma de fogo. Inexiste autoridade brasileira apta a conceder licença para o porte de machado, espada, faca, tesoura etc., fora de casa. Aliás, nem mesmo para manter essas chamadas armas brancas em casa existe licença. Em segundo lugar, registre-se a correlação da arma com munição, no § 2º, dando mostra de se tratar de arma de fogo, única capaz de utilizar munição. Em terceiro lugar, observe-se o conteúdo das alíneas a, b e c do § 2º, pois se trata de contravenção penal não comunicar ou entregar a arma à autoridade, quando a lei o determina (não se tem notícia da preocupação de qualquer legislador ou mesmo autoridade controlando o porte de facas de cozinha, mesmo os enormes facões de churrasco). Igualmente, é contravenção permitir que inimputáveis ou inexperientes manejem arma… Qual arma? Um martelo, um serrote, uma foice? Evidentemente, a arma de fogo. Finalmente, trata-se de contravenção omitir as cautelas necessárias para que inimputáveis tenham acesso às armas. Vamos colocar cadeados na gaveta da cozinha para que os menores não toquem nas facas? Devemos colocar correntes em espadas decorativas presas na parede ou em foices enormes, usadas para jardinagem? Nada disso é viável, pois o foco é a arma de fogo.

A partir da edição da Lei 9.437/97, dispondo sobre as armas de fogo e munições, o art. 19 da Lei das Contravenções Penais perdeu a sua utilidade. Pode-se até dizer que, antes de 1997, havia condenação de quem portasse ostensivamente uma faca na cintura. Pode-se dizer, então: uma lástima. Afinal, eram outros tempos nos quais o apego à legalidade em direito penal era pouco cultuado. Todas as armas brancas (armas que não são de fogo) não possuem licença alguma da autoridade para serem adquiridas e, portanto, carregadas pelo seu proprietário.

Não desconhecemos haver argumentos sustentando a vigência do Decreto Estadual 6.911/35, que proíbe o porte de “armas brancas destinadas usualmente à ação ofensiva, como punhais ou canivetes-punhais, ou facões em forma de punhal; e também as bengalas ou guarda-chuvas ou quaisquer outros objetos contendo punhal, espada, estilete ou espingarda”, além de “facas cuja lâmina tenha mais de 10 centímetros de comprimento e navalhas de qualquer dimensão…” (art. 5.º). Entendemos, no entanto, que o referido decreto, de lavra do interventor federal no Estado de São Paulo, Armando de Salles Oliveira, não foi recepcionado pelas Constituições posteriores (de 1937 até 1988). Não pode um decreto disciplinar matéria penal, que é, nos termos do atual texto constitucional, assunto privativo da União (art. 22, I, CF). Além do mais, cuida-se de um decreto estadual, não tendo qualquer abrangência para o restante do país.

Na sequência, emerge a Lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento), tratando das armas de fogo com maior rigor. Novamente, nada se trouxe de novo em relação às denominadas armas brancas. Considerando aquele Decreto Estadual de 1935 apenas um documento histórico, sem qualquer vigência, não há lei alguma dispondo sobre qualquer espécie de arma, a não ser de fogo. Não nos esqueçamos que, segundo o disposto no art. 5.º, II, da Constituição Federal, ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Inexistindo lei para regular a licença para o porte de arma branca, quem quiser fazê-lo está livre para assim agir. Questiona-se: posso sair com uma espada na cintura? Em tese, sim. Porém, muitos estabelecimentos podem até negar o acesso do sujeito nesse estado, por conta de perturbação do sossego e tranquilidade de outras pessoas. No entanto, prender a pessoa, lavrar termo circunstanciado e levá-la ao juiz para reprimenda não tem o menor sentido.

Carregar um soco-inglês é possível? Por que não? Inexiste lei a disciplinar seu uso. Se couber à polícia eliminar das ruas qualquer objeto que entenda perigoso ou vulnerante, sem previsão legal específica, estar-se-á ferindo o princípio da legalidade e seu corolário da taxatividade. Sem definição precisa do que vem a ser arma (fora a arma de fogo, com lei própria), um simples pedaço de pau pode assim ser considerado. Absurdo seria a intervenção policial em relação ao cidadão que carregasse um pedaço de pau no meio da rua.

Não se trata, igualmente, de norma penal em branco, pois não há relação de armas brancas válida para preencher o tipo do art. 19 da Lei das Contravenções Penais. Ainda que se argumente que já houve proibição de porte de punhal, por exemplo, pode-se, claramente, notar que uma foice (material de trabalho de muito agricultor) pode ser mais vulnerante que o referido punhal e, decididamente, não é arma destinada à ofensividade. Não podemos concordar com a falta de taxatividade deste tipo, deixando ao alvedrio do agente policial, ao deparar-se com um cidadão caminhando pela rua com uma foice atrelada à cinta, prendê-lo ou não, conforme a sua interpretação. Estaria esse sujeito indo ao trabalho, com o instrumento que utiliza para exercê-lo, ou pretenderia agredir terceiros? Essa pergunta não pode ser respondida ao sabor das vontades e segundo a experiência pessoal de cada um.

Se o Estado achar prudente vedar o porte de certas armas brancas que edite um tipo penal incriminador claro e preciso, demonstrando quais são as tais armas proibidas e como se obtém licença para carregá-las. Enquanto essa medida não ocorrer, o art. 19 tornou-se inaplicável. Quem o aplicar estará lesando o princípio da legalidade, logo, é inconstitucional essa norma para tutelar armas brancas.

No sentido de ser inaplicável o porte de arma branca: STF: “Art. 19 da Lei das Contravenções Penais: “trazer consigo arma fora de casa ou de dependência desta, sem licença da autoridade”. Para obter condenação pela contravenção, a acusação deve demonstrar que seria necessária a licença para porte da arma em questão. Não há previsão na legislação acerca da necessidade de licença de autoridade pública para porte de arma branca. Norma penal em branco, sem o devido complemento. Sua aplicação, até que surja a devida regulamentação, resta paralisada. 5. Dado provimento ao recurso a fim de julgar improcedente a representação para apuração de ato infracional” (RHC 134830 – SC, 2ª.T., rel. Gilmar Mendes, 26.10.2017, v.u.).

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